Uma tragédia que não pode ser esquecida, nem maquiada
Hoje completam 111 anos do principal registro do “Quebra”, período de terror sobre os terreiros de Maceió, ápice de uma campanha de ódio contra os cultos de raiz africana por motivação política, e que usou como armas o racismo e o preconceito social & religioso.
Em relação à grandeza do episódio, os registros de época são escassos, mas os estudos foram ampliados no final do Século XX por intelectuais de porte, além da redobrada atenção da militância afrodescendente. Mas sempre é preciso estudar mais e mais uma ocorrência tão importante como a “Quebra de Xangô”.
Acontecido na Capital alagoana, teve repercussão nacional em seu tempo, noticiado pela ótica do preconceito religioso, racismo e partidarismo. Em verdade, o povo preto de terreiro pagou o pato numa guerra política entre gansos brancos, sendo violentado pela turba de Fernandes Lima, por conta das ligações de Euclydes Malta com o xangô.
Euclydes Malta, branco e oligarca, era do xangô, conhecido nos terreiros como Leba. Governador pela terceira vez, disputaria o quarto mandato em 1912. Fernandes Lima, mestiço e candidato a oligarca, liderou a minoria armada e insurgente através da milícia "Liga dos Combatentes Republicanos" e partiu para quebrar a base popular do grupo adversário, espalhando terror.
Depoimentos orais importantes foram se perdendo no oco do mundo, ocultos pela cortina de silêncio montada em torno de um “acontecimento vergonhoso”, como é vício aqui e alhures, do tipo “não se fala mais nisso”. Assim, antes que o tempo golpeie minha memória, transcrevo aqui um relato do qual sou testemunha auricular.
Invoco a voz de Sinhá Têca (desculpem o circunflexo irregular, mas...), a quem não conheci, mas ouvi as histórias dela de fontes seguras, as irmãs Ida, Neta e Nia, meninas das quais foi babá e jovens que dela cuidaram quando envelheceu. Na época, sem previdência e nem aposentadoria para empregadas domésticas, valia o sentimento de quem empregava.
Sinhá Têca virou agregada da família de Domitila e Américo. Era católica e foi casada com um Pai de Santo. E repetia para as moças brancas, que havia ajudado a criar, sempre a mesma história traumática: “Nossa Senhora me salvou, pois se tivesse acompanhado meu marido na religião dele, teria sido assassinada como ele foi”.
Acompanhado por fiéis de seu terreiro, o marido de Sinhá Têca fazia uma oferenda na então deserta Praia de Pajuçara, e foram cercados pela milícia anti-Xangô. Ele apanhou tanto que morreu ali mesmo, na areia. Não há registro desse crime nos jornais, e dados importantes, como o nome da vítima e data do crime, se foram com a viúva, que viveu até os anos 50.
Por sua vez, as filhas de Domitila e Américo acrescentavam uma lição: “Fernandes Lima foi castigado poque perseguiu os terreiros. Todos os seus filhos enlouqueceram, morreram loucos. Não se deve mexer com Xangô, a vingança vem do alto”.
A família de Domitila e Américo morava em Mangabeiras, então área rural, onde também estava a casa de campo de Fernandes Lima (hoje a Cruz Vermelha Brasileira) e conhecia de perto as desventuras familiares do organizador do Quebra.
Fica esse modesto registro, junto com o apelo para o aprofundamento das pesquisas. O Quebra precisa ser ainda mais estudado, e os cacos das memórias que ainda possam ter sobrevivido precisam ser recolhidos e rejuntados.
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