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Existirmos: a que será que se destina?

Por Hayton Rocha 27/12/2023 08h08
Existirmos: a que será que se destina?

Fruto da saudade que sente de um grande amigo, Caetano Veloso há quase meio século questiona o propósito da vida logo no primeiro verso de sua marcante canção "Cajuína".

Agora, aos 81 anos, anuncia que vai tirar um período de “férias radicais". Uma pausa para descansar, por prazo indeterminado, após uma série de três shows na Bahia que fizeram parte da turnê "Meu Coco".

Pede a "amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos" que não o incomodem. “...Não me convidem para atividades públicas, participações, conceder entrevistas ou emitir opiniões, gravar vídeos, escrever releases e outros textos ou qualquer outra atividade, sobretudo àqueles que sabem que mais me tocariam com seus chamados…”.

Milton Nascimento, também aos 81 anos, tem aproveitado “radicalmente” sua aposentadoria dos palcos para ver televisão, encontrar amigos e viajar. Fez a última turnê da carreira em novembro do ano passado e, desde então, vive noutro ritmo, sendo descrito por seu filho como um aposentado convicto.

Virada de ano é época de reflexão.

Eu ainda não tive o privilégio de chegar aos 81, mas já gozo “férias radicais” há algum tempo, com toda convicção. E neste calorão de chamuscar orelhas às sete da manhã, saio pra caminhada sob o olhar atento de uma coruja-buraqueira e só penso na volta pra casa, no banho refrescante do jeito que Deus me mandou ao mundo, debaixo de um chuveirão próximo da aroeira-salsa do quintal.

Se hoje o que prevalece é o “aqui e agora”, como pregam os céticos quanto à vida eterna, esse calorão anda derretendo sem dó, noite e dia, milhares de almas pecadoras. Tudo indica Deus baixou uma ordem de serviço, em papel timbrado e com firma reconhecida, determinando ao Tinhoso que aplique em vida as penas cabíveis aos merecedores por pensamentos, palavras e obras, aliviando a sobrecarga de trabalho no Juízo Final.

Por mim, trabalho nunca mais! É triste que a única coisa que uma pessoa possa fazer oito horas por dia seja trabalhar. Não consegue comer, muito menos beber ou namorar por oito horas seguidas. Nem mesmo dormir, ainda que de barriga cheia, com as contas em dia e sem muriçocas zumbindo nos ouvidos ou crianças tossindo por perto.

Mas não sou radical. Queria ser pago para dormir. Seria o emprego dos sonhos, porém nunca sequer fui convidado para uma entrevista. Confirma-se que a única coisa que uma pessoa consegue fazer por oito horas é trabalhar. O pior: para alguns, não fazer nada pode ser fatal. O tédio fica só espreitando nas sombras, sabe-se lá com que intenções.

Fato é que sempre desconfiei dessa coisa de que cada dia é um presente. Se fosse assim, haveria um balcão em algum lugar onde se poderia devolver segundas-feiras. Era inaceitável, para mim, que toda segunda-feira estivesse tão longe da sexta-feira e sexta-feira tão perto da segunda-feira.

Quem não me conhece pode pensar que fui (ou sou) um irresponsável. Nada disso! Trabalhei por mais de quatro décadas. Portanto, não tenho nada de pessoal contra o trabalho, principalmente quando realizado, silenciosa e discretamente, por meus sucessores.

Pena que só agora, após a aposentadoria, percebo que um sujeito sozinho pode ser um burro completo, mas para se alcançar a plenitude da asnice coletiva, nada supera o trabalho em equipe (o território da terceirização das culpas!). Neste ponto, começo a acreditar em reencarnação porque certos níveis de estupidez não podem ter sido acumulados numa única existência.

Hoje, considero a preguiça uma grande virtude, pois é o único pecado que nos impede de cometer outros. E quando tentam me convencer de que trabalho é saúde, inclusive mental, digo que a vida toda fui solidário para com “amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos” (como classifica Caetano). Logo, se trabalho é saúde, renuncio a parte que me cabe em favor dos carentes de saúde.

E quando reencontro antigos colegas de trabalho ainda estressados com prazos de entregas, dou razão a Millôr Fernandes, para quem “o que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que a gente faz por ele.” Ou, como pontuou certa vez, “...quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito”.

Enfim, volto ao ponto de partida. Existirmos: a que será que se destina? Penso que para cometer todos os acertos e desacertos possíveis numa breve janela do tempo, esse “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, como bem lembra Caetano noutra bela canção. Nem tudo relacionado a trabalho, claro!

Minha lista particular, no entanto, é tão comprida que, ao chegar aos mesmos 81 anos que ele e Milton, ainda estarei bastante atrasado. Portanto, não devo morrer tão cedo.