A flauta que fez
Para celebrar o centenário de Altamiro Carrilho (1924 – 2012), o gênio da flauta transversal, a Casa do Choro, no Rio de Janeiro, está lançando um site com o acervo particular do músico, doado pela família à instituição. São gravações, manuscritos, partituras, fotografias, troféus e objetos pessoais, catalogados pelo pesquisador Tomaz Retz, agora ao alcance dos fãs do mais antigo gênero de música popular urbana do Brasil: o choro.
Que manhã inesquecível em 1998, no Recife, aquela sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho! De noite, ele se apresentaria para convidados do Banco do Brasil na cobertura do prédio onde a Avenida Rio Branco cruza com o Cais do Apolo. Um lugar iluminado, à beira-rio.
Altamiro, com mais de 100 discos, fitas, CDs e sei lá mais o que gravados em 60 anos de carreira, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil. Uma ação de marketing cultural que reuniu uma seleção de craques da música instrumental brasileira, incluindo Armandinho, Dominguinhos, Raphael Rabello e outras feras.
Dava para notar que, muito mais que um instrumentista famoso, eu estava diante de um cara no ápice da maturidade (74 anos), ainda apaixonado pelo que fazia e de um bom humor contagiante.
Contava histórias impagáveis. Um dia, dizia ele, sofrendo horrores com uma apendicite, foi levado de ambulância ao hospital, no Rio de Janeiro. Lá, enquanto era anestesiado, só pensava em como iria pagar a despesa, já que a situação financeira nunca foi lá essas coisas. Mas quando acordou, o médico, todo sorridente, acelerou sua recuperação ao dizer que a conta já tinha sido paga: ao lado do pai, de quem herdara o gosto pelo choro, ele curtia os discos de Altamiro desde criança.
Gratidão é algo interessante. Geralmente as pessoas preferem retribuir um dano com um coice a agradecer, com o coração, um favor. Talvez porque ser grato pesa mais do que querer se vingar. Poucos enxergam que, ao receber um benefício com gratidão e reconhecimento, já quitam parte da dívida na origem.
Mas até as boas conversas chegam ao fim. Quando ofereci de presente a Altamiro uma caneta chique, com a logomarca do patrocinador do evento da noite, ele sorriu e desandou a falar de como se tornara conhecido no mundo todo, depois de rodar países como Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal, União Soviética e mais um montão de lugares.
Numa turnê em 1963, um famoso maestro russo ficou encantado depois de assistir a um espetáculo em Moscou e fez questão de cumprimentá-lo no camarim, afirmando que acabara de ouvir um dos melhores flautistas do mundo. Resultado? Teve que esticar a estadia por mais três meses por causa de tantos convites para shows.
No último dia, o famoso maestro o convidou para um café da manhã. Os russos são conhecidos pela sua hospitalidade. Gostam de receber amigos e mesas fartas são o atributo principal desses encontros. Mesmo que seja apenas um encontro amistoso, modesto, é comum, ao final, oferecer um mimo ao visitante que seja muito relevante para o anfitrião em termos afetivos.
Altamiro recebeu uma velha caneta-tinteiro, com a ressalva de que ela havia assinado diplomas de grandes músicos russos. “Que presentão, hein!?”, pontuou o flautista brasileiro com os olhos marinando, dizendo que quase se ajoelhou diante do russo.
Ao chegar no Rio, um duro golpe: sua mala tinha sido violada e levaram a caneta que ele escondera entre meias e cuecas. E um dos maiores divulgadores do nosso choro, inconsolável, tomou o rumo de casa, onde se trancou no quarto por dois dias e chorou, chorou como nunca, segundo ele.
Pensando bem, o que esperar de uma nação que, anos mais tarde, acordaria estarrecida com a notícia de que o mais importante ícone do futebol (o troféu Jules Rimet, conquistado em definitivo após três vitórias em Copas do Mundo, em 1970) havia sido roubado e derretido?
A estatueta com 3,8 kg de ouro estava na sala da presidência da CBF, no prédio da Rua da Alfândega, no Rio, onde funcionava a entidade. O vidro à prova de balas da vitrine não serviu de obstáculo aos ladrões, que quebraram a moldura de madeira e levaram inclusive outros três troféus. O roubo foi considerado escandaloso pela facilidade com que os ladrões entraram e saíram do prédio carregando o maior símbolo da história do futebol brasileiro.
Embora a conexão entre um roubo e o outro possa parecer forçada, a comparação com a perda pessoal de Altamiro reflete uma questão cultural e histórica bem mais ampla. Triste Brasil.
Mas voltemos à sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho, há 25 anos. Preciso contar que ele esqueceu, na sala em que conversamos, a caixinha com a caneta que ofereci.
Não lhe fez falta, imagino. A que fez, era outra. Tinha a tinta da gratidão e do reconhecimento no bico da pena.
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