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IA: A discussão sobre o direito de conteúdo deve ganhar novos capítulos em 2024

A ausência de uma regra geral impede o uso seguro da inteligência artificial para além da simples ferramenta do dia a dia.

Por Thereza Castro* 01/02/2024 13h01
IA: A discussão sobre o direito de conteúdo deve ganhar novos capítulos em 2024

Sem dúvidas um dos principais temas discutidos esse ano foi o da Inteligência Artificial. Obviamente são muitos os aspectos envolvendo o tema, o que vai desde uma grandiosa campanha publicitária até montagens e vazamentos de celebridades, construídas obviamente com esse recurso tecnológico. Vou me ater aqui sobre o uso dessa ferramenta de forma lícita para entendermos o que está em debate em relação ao direito de uso.

Embora tenhamos visto o tema sendo trazido para as mesas em diversas ocasiões, ele ainda não está mais claro em relação a alguns aspectos relevantes no que se refere aos direitos atrelados a seu uso. Porém, ao badalar dos sinos do fim do ano, surge um projeto de lei que promete trazer luz, em parte, ao tema.

Seguindo dois pontos muito questionados no meio de 2023, o deputado Marx Beltrão propôs no Projeto de Lei 4025/23 a necessidade inequívoca de autorização do uso de imagem de pessoas representadas pela IA, bem como o rol de legitimados para conceder tal autorização quando tratarmos de pessoa falecida, recurso conhecido como deep fake, que veio à tona na ocasião da propaganda da Volkswagen, que trazia a falecida Elis Regina dirigindo a nova kombi. Você se lembra dessa campanha?

No mesmo projeto, o parlamentar também foi feliz ao bem colocar que as obras utilizadas para treinamento das IAs que são protegidas por direitos autorais devem receber remuneração, já que hoje as Inteligências Artificiais generativas se utilizam de banco de dados que não são necessariamente abertos para se aprimorarem, sem que para isso tenham que remunerar tal utilização. Com tal proposição, isso deve mudar e dar aos detentores das obras a devida e justa contrapartida.

No entanto, a mesma luz não pudemos vislumbrar em relação ao tratamento de direitos, principalmente os patrimoniais em relação aos produtos gerados por tais IAs.

O direito autoral brasileiro é centrado na criação da alma, o que pressupõe, pela lógica, a necessidade de um ser humano, o que seguiu o projeto, apontando que a condição de autor fica restrita aos humanos, porém, complementou que, as obras geradas por IAs não gozam, independente do grau de complexidade e autonomia da ferramenta, de proteção autoral, o que jogaria de imediato essas criações ao livre uso de qualquer um, independente do investimento em licenças pela empresa ou pessoa que desse o comando.

Hoje, no cenário internacional existem algumas possibilidades de tratamento dos produtos gerados pelas IAs generativas em debate. Uma corrente prevê que embora a condição de autor seja humana, a proteção patrimonial subsiste para o detentor da ferramenta, o que era o rumo do debate em voga no Brasil antes do projeto do deputado.

Outra corrente segue pela ausência de proteção autoral a tais criações, deixando assim o produto livre para uso de quem quer que seja, o que pode ser entendido pelos termos do projeto, a nova adoção proposta em terras pátrias.

Uma terceira, no entanto, embora não dê proteção autoral tampouco permite seu uso geral, mas a restringe a aquele, seja a pessoa física ou pessoa jurídica, que pagou pela licença do software e, portanto por seu comando, gerou produto, tendo assim o direito de exploração dos itens gerados pela ferramenta.

As distintas correntes partem de um olhar muito distinto para o que é a inteligência artificial generativa, já que se a vermos como uma simples ferramenta, onde a pessoa tem uma intervenção criativa determinante, ficaríamos com o terceiro tratamento, que compara o ChatGPT ao Word, por exemplo, deixando claro que os textos de comando imputados às ferramentas são de determinante criatividade da pessoa que o escreve, e logo, seria o resultado.

Se, porém, vermos a IA generativa com uma capacidade complexa de criação e os comandos como um mero apertar de botões, restando a criatividade na capacidade do desenvolvedor de entregar uma máquina com ampla habilidade de geração, desde textos até narração, então ficaríamos com a primeira corrente.

Por fim, se concordamos com a complexidade elevada da IA, mas levamos em conta que ela não tem alma e, por isso, é somente uma ferramenta que se utiliza de banco de dados, e da mesma forma, o ato humano é um apertar de botão sem grande ingerência criativa no resultado, ficaremos com a segunda corrente.

Em suma, se esse pedaço específico do projeto de lei do parlamentar de fato for aprovado, teremos teoricamente uma solução para o debate, mas a abertura de outras discussões e polêmicas, principalmente tendo em vista o grande montante de dinheiro investido no desenvolvimento e uso de licenças dessas ferramentas por grandes empresas, que se veriam desprotegidas nas suas gerações. Ponto aliás que fez com que a primeira corrente fosse adotada em alguns lugares do mundo, como bem ouvi de uma advogada Malasiana com a qual encontrei recentemente. No entanto, as posições mundiais também não parecem unânimes, fóruns ao redor do globo também vem se propondo a discutir esse tema.

Há um pouco mais de trinta dias a Europa dava lugar a um dos seus primeiros grandes debates sobre o uso ético da ferramenta, assim como um pouco depois Istambul recebia pessoas do mundo inteiro que se dedicam ao tema de propriedade intelectual tendo como um dos grandes pontos a Inteligência Artificial.

Assim, o ano chega logo ao fim, mas os debates sobre o tema IA estão longe de acabar e devem ganhar mais espaço ainda nos próximos anos.

Muitos sugerem que a análise a respeito dos direitos envolvidos nos produtos da Inteligência Artificial generativa teria mais efetividade se discutidos e analisados caso a caso, mas a falta de uma regra geral impede o uso seguro da IA para além da simples ferramenta do dia a dia, isto que se já não utilizado, deve ser implementado por todos, afinal a tecnologia traz vantagens inegáveis para as atividades cotidianas.

Há que se frisar que a grande discussão em torno dos direitos não está em utilizar a IA para correções, rápida geração de slides para uso próprio ou coisas correlatas, mas em usos mais amplos que, embora possam baratear produção, como no caso das narrações, passam por questões muitos mais profundas dos profissionais envolvidos e dos direitos sobre a criação.

A evolução da tecnologia é irrefreável, este é um fato, e quanto maior for sua capacidade de gerar produtos que pressupõe criatividade, maior será a dificuldade de análise de direitos relacionados, sem a menor dúvida.

É fundamental continuarmos, seriamente, portanto, o exercício e debates para o estabelecimento das regras de uso e exposição de uso das IAs nesses casos, até porque, identificar essa interferência também será mais difícil, e precisamos entender, como mercado e sociedade onde de fato queremos essa participação.

O recente caso da desclassificação de uma obra do prêmio Jabuti quando foi deflagrado uso de IA para geração de sua capa talvez nos aponte um início de caminho do que queremos ou não englobar.

Partimos, enfim, logo mais para 2024 com algumas respostas, mas bem longe de ter todas, sobre esse tema que promete estar em torno de nós por um bom tempo. Enquanto isso, se aprofundar no conhecimento destas ferramentas, suas possibilidades e limitações, além de reforçar seus contratos pro melhor tratamento dessa possibilidade, urge.

*Thereza Castro  é advogada com foco em direitos autorais e estrategista de inovação para o mercado literário