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A falta que faz uma pomba

Por Hayton Rocha 15/02/2024 12h12
A falta que faz uma pomba

Se você espera um texto sobre o luto de alguém, relacionado aos carnavais de outrora, sentindo a ausência de seu cobertor de orelhas "macetando" o apocalipse, bem, sugiro que ajuste seus óculos e prepare-se para uma reviravolta. Não é disso que pretendo falar nesta Quarta-feira de Cinzas.


Sábado retrasado, eu seguia pela orla da Pajuçara, de olho nos foliões que se arrumavam para homenagear o “Pinto da Madrugada”, bloco carnavalesco maceioense que acaba de completar 25 anos. Meu passeio me levou até o Memorial Teotônio Vilela, que mais parece uma ode à arquitetura de Niemeyer, com seu vitral patriótico e uma estátua do Menestrel das Alagoas em pleno ato de libertação de uma pomba, símbolo de sua batalha pela pacificação do Brasil após quase 20 anos de ditadura militar.



Esse gesto me fez lembrar da cantora Fafá de Belém, que, um ano após a morte do senador, em 1984, também soltou uma pomba que tinha nas mãos, no histórico comício pelas “Diretas Já”. Tempos duros em que a liberdade era mais valorizada do que dinheiro na cueca ou em paraísos fiscais, onde a sociedade, artistas populares e os políticos de diferentes partidos se uniram em torno de um interesse maior: a redemocratização do Brasil.
Foto: Fafá de Belém, Teotônio Vilela e Fernando Brant (álbum da família Vilela)


Falando em pombas, essas criaturas aladas não são apenas mensageiras de paz na Bíblia. São protagonistas de histórias que vão desde a arca de Noé até o batismo de Jesus. Mas, vamos combinar, de uns tempos pra cá elas têm sido rotuladas por muita gente como verdadeiras “ratazanas do céu”.



No palco urbano, onde fazem as vezes de coadjuvantes, seguem ecoando seus arrulhos misteriosos, quer a plateia aprecie ou não o espetáculo. Mas, quem diria, no civilizado Japão da paz (como canta Gil), a trama ganha contornos dignos de uma novela policial, com essas bichinhas alçando voos rumo ao estrelato de vítimas de um crime inusitado.



No final do ano passado, Atsushi Ozawa, um taxista de 50 anos, morador de Tóquio, decide que é hora de fazer justiça com as próprias rodas, encenando uma versão motorizada de "O Predador" contra um grupo de incautas pombas. Seu veículo, antes mero meio de transporte, transforma-se na arma do crime contra uma ave que não constava na lista de espécies caçáveis.



O enredo se torna denso quando Ozawa, sem uma gota de remorso, declara à polícia que agiu em legítima defesa territorial, alegando que as ruas são domínios humanos e as pombas, simples intrusas que deveriam ter o bom senso de evitar carros, atrapalhando o trânsito. "As estradas são para as pessoas," proclamou, após um episódio de alta velocidade digno de ser narrado por Sílvio Luiz, com direito aos bordões “olho no lance!” e “pelas barbas do profeta!”.



O desfecho dessa saga urbana não poderia ser mais dramático. A lei japonesa, pouco acostumada a tratar casos de homicídio avícola, convoca um veterinário para realizar uma autópsia na vítima fatal, buscando evidências de que a morte foi um trágico encontro com o táxi de Ozawa. A conclusão? Um choque cruel, doloso, digno de cadeia.



Nas redes sociais, a coisa pega fogo, com pessoas chocadas com o fato de que atropelar uma pomba possa render cadeia, enquanto outras acham que o motorista passou dos limites. Quem diria que esses símbolos pacíficos iriam causar tanta polêmica?



A má vontade com as pombas tem explicação: por serem bonitinhas e ordinárias, as pessoas gostam de alimentá-las com restos de comida, algodão doce, pão, pipocas, que são alimentos inadequados e prejudicam a saúde, além de viciá-las.



Como já não são mais caçadas por predadores urbanos (os gatos preferem ração de boa qualidade), cresce sem controle a população de pombas e o aumento tornou-se um sério problema, pois são potencialmente perigosas para a saúde humana.



A Salmonelose, por exemplo, é uma doença infecciosa provocada por bactérias, e a contaminação ocorre pela ingestão de alimentos com fezes (coisa que prefiro acreditar nunca aconteceu comigo ou com você). Ou a Histoplasmose, provocada por fungos que se proliferam nas fezes de aves e morcegos, cuja contaminação se dá pela inalação de esporos (células reprodutoras do fungo).



A versão brasileira da novela japonesa será facilitada pela atual concentração da sociedade em dois lados, onde adversários são tidos como inimigos e transgredir as regras é sempre justificável. Quem procura se manter fora desses dois polos, com outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambas as facções têm acertos e erros, é tratado pejorativamente como “isentão”. E tome insultos e patrulhamento ideológico!





Sem trocadilho, penso que essa gente intolerante e raivosa anda precisando mesmo é de meia hora de pomba (com o relógio parado!). E não estou falando de uma qualquer, mas daquelas que tiveram o privilégio de voar das mãos de Teotônio Vilela e de Fafá de Belém. Se voltaram, não tenho notícia...