Blog do Hayton

e outros casos” (2021) e "Frestas" v(2022).

O dever de tentar

20/06/2024 08h08
O dever de tentar

os 85 anos, uma querida amiga minha decidiu renovar a CNH para adquirir um novo carro. Ela pretende retomar as rédeas de sua vida: ir à praia, à igreja, ao supermercado, à farmácia, ao salão de beleza e aos bailinhos da penúltima idade, sem depender de ninguém.

Viúva, ela já não divide sua intimidade nem com as filhas descasadas. Mora sozinha, cuida da própria alimentação, assiste TV, reza e navega nas redes sociais. Temendo quedas, largou as caminhadas ao entardecer, aderindo à prática do pilates.

Ela acredita que poderá contribuir bem mais para a economia de consumo, pois entrará no círculo virtuoso em que um bem durável não só gera lucro a quem o produz, mas também redistribui renda, desde grandes industriais até os guardadores de rua.Alega também que apoiará vários segmentos produtivos, desde a indústria automobilística até petroquímicas, refinarias, destilarias de álcool, postos de combustíveis, fábricas de centrais multimídias, painéis digitais, couros, plásticos, pneus, rastreadores, tintas, lojas de autopeças e oficinas mecânicas.

Sua contribuição ainda alcançará fornecedores de bens e serviços a supermercados, passando pelos fabricantes de artigos cosméticos usados por sua cabeleireira, até o pessoal envolvido nos bailinhos das matinês de domingo (maître, barman, cozinheiro, garçons, músicos e dançarinos, entre outros).
Não esquece nem dos agentes de trânsito. No mínimo, aumentarão a arrecadação pública com multas por estacionamento de maneira inadequada, direção sem documentos de porte obrigatório e avanço de semáforos vermelhos. Se forem desonestos, optarão pelo “confisco privado”, certamente menos voraz, cujo resultado, de qualquer modo, retornará aos supermercados.

Por pouco a criatura não me convence! De tanto ver telejornal, parece jornalista cavando uma boquinha num ministério da área econômica. Me fez recordar do tempo em que, com quatro omeletes de carne moída e as sobras recicladas de arroz, feijão e farofa, superava o desafio de alimentar sua numerosa família na véspera do pagamento do salário do provedor geral, quando a geladeira exibia sintomas de falência de múltiplas gavetas.

Mas ela sabe que tudo depende da renovação da CNH. E que não há restrição legal ou regulamentar por idade, apenas por condições físicas e psicológicas, para garantir a segurança de quem está dirigindo ou, sobretudo, de terceiros desavisados que cruzarem seu caminho.

O entusiasmo é tão grande que eu não quero quebrar o encanto da exposição macroeconômica de motivos. Embora, confesso, me ocorra procurar o Detran munido de um relatório médico recomendando a suspensão do seu direito de dirigir. Pressentimento é coisa séria.

Seria traumático, entretanto. Então, resolvi conversar:

– Vale a pena a senhora enfrentar de novo o inferno do trânsito?

– Claro! Só saio de casa nos horários menos movimentados...

– Já pensou se levar outra fechada de ônibus daquela que teve que subir a calçada? E se atropela alguém? O que vai ser dos filhos desse infeliz?

– Vire esta boca pra lá! Você já viu um raio cair duas vezes no mesmo canto?

– E se derruba um motoqueiro no asfalto, sem capacete, de bermudas e descalço? É encrenca pro resto da vida, tá sabendo?!

– Meu filho, relaxe! Quem tem medo de fazer cocô, não come nem bolacha Maria!

Torço para que o perito do Detran perceba certa desatenção (ou que os reflexos já não são os mesmos) durante o exame de renovação da CNH, porém os próprios filhos concordam que o desfecho mexerá com sentimentos como felicidade, frustração ou tristeza. Para ela, dirigir sempre foi sinônimo de independência, e perder isso não é fácil, especialmente para alguém ainda ativa e lúcida, inclusive dançando arrasta-pé, baião, forró e xaxado nesta época do ano.

Não me perguntem como, mas ela conseguiu a renovação da CNH. Nada mais me surpreende quanto à capacidade de persuasão dessa matriarca determinada, firme como uma baraúna.

Mesmo assim, os filhos se reuniram para discutir como fazê-la desistir da compra. Então um deles se encarregou de comunicar a opinião unânime da família, inclusive de alguns bisnetos adolescentes:

– Quando a senhora precisar sair, combine com um dos 8 filhos ou 20 e tantos netos. Não é possível que não tenha ninguém disponível.

– E se for emergência?

– Chame um “Uber”. É menos arriscado.

– Você tá me achando com cara de rapariga pra ficar na calçada esperando um carro com o celular na mão?

E deu aquela rabissaca, gesto de desprezo bem nordestino, com direito a virada brusca do corpo, lábios cerrados e sacudidas da cabeça.

Tentar ela tentou, mas acabou desistindo da compra porque, em geral, o mercado considera o limite de 70 anos para financiamento de veículos. Ficou triste, é verdade, mas só até ouvir um sanfoneiro cantar assim (referia-se ao carro, certamente!): "Eu não preciso de você/O mundo é grande e o destino me espera/Não é você quem vai me dar na primavera/As flores lindas que sonhei no meu verão...".

Ainda bem. Pena que a economia brasileira jamais saberá o quanto deixou de faturar sem minha querida amiga circulando ao volante pelas ruas.