Entre coices, closes e mordidas
Na última semana do mês passado, uma mulher, com mais desejo de fama do que bom senso, tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou com uma mordida no braço. A cena, digna de uma comédia de erros, foi registrada em vídeo e publicada no YouTube, onde se vê a mulher se aproximando do cavalo e, em um esfregar de olhos, o animal abocanha seu braço. Assustada, ela escapa e se junta aos demais visitantes. Não se sabe o que um teria dito ao outro, antes da mordida.
Na sequência da cena anterior, vê-se a mulher estendida no chão, cercada por turistas. Uma delas, com um leque em mãos, tenta reanimá-la, enquanto os policiais chegam para avaliar a situação. Fiquei sabendo que um dos agentes, após conversar com a vítima, se dirigiu ao guarda, acariciou o cavalo e, quem sabe, discutiu a questão da mordida sob a ótica equina e psicanalítica.
O cavalo, já notório por sua disposição dentária, havia tentado morder outra pessoa pouco antes. Uma moça de vestido rosa foi a primeira corajosa a se aproximar do animal, que prontamente virou a cabeça em sua direção e tentou morder seu antebraço. Ela conseguiu escapar, mas a segunda turista, não tão sortuda, acabou se tornando a protagonista dessa história.
Curiosamente, uma placa ao lado do intolerante cavalo advertia sobre os riscos: "Cuidado. Cavalos podem dar coices ou morder. Não toque nas rédeas. Obrigado". Mas parece que as advertências foram ignoradas em favor de um flagrante perfeito no celular, a ser compartilhado nas redes sociais.
Nos comentários sobre a notícia, a internet, sempre ácida, teve seu momento de glória. Um usuário observou que não havia sangue, explicando que cavalos não mordem propriamente, porém mascam, resultando numa sensação semelhante a um beliscão poderoso. Outro foi cruel, dizendo que a mulher teve os "quinze minutos de fama que queria" e deveria ter lido a placa. Um terceiro ponderou que quem vai tirar fotos com os cavalos deve estar ciente dos riscos, afinal, são animais que agem por instinto e têm humores tão oscilantes quanto os humanos. Sobretudo, admito, quando fardados ou investidos em funções de mando no universo corporativo. Cavalos e homens, claro.
O mais curioso, talvez, seja que ninguém percebeu que, no fundo, o incidente não configura propriamente uma notícia: notícia seria se a mulher tivesse mordido uma das orelhas do cavalo. Cavalos mordendo turistas é quase uma rotina global, "na Oropa, França e Bahia", como diria Alceu Valença, o menestrel pernambucano.
Notícia ou não, lembrei-me de um episódio ocorrido em 1978, quando o então presidente Ernesto Geisel indicou o general João Baptista Figueiredo para ser seu sucessor. O governo iniciou uma campanha para popularizar a imagem do chefe do SNI, chamado um tanto forçadamente de “João do Povo”. Mas a iniciativa fracassou, em boa parte devido à personalidade do general. Em uma entrevista, concedida em agosto daquele ano, ao ser questionado se gostava do “cheiro do povo”, Figueiredo respondeu: “O cheirinho do cavalo é melhor”. O amor pelos equinos era tanto que Myrian Abicair, dona de um dos mais badalados spas do Brasil (o “Sete Voltas”, em Itatiba-SP), décadas depois assumiu publicamente um romance extraconjugal com o general, afirmando que a coisa mais valiosa que ganhou dele foi um cavalo. Nada a admirar.
Voltemos ao episódio da mulher que tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou mordida no braço. Esse evento ilustra bem o dilema das grandes cidades turísticas, nos dias de hoje, que tentam equilibrar a necessidade de receitas do turismo com o bem-estar dos moradores. Em Barcelona, manifestantes têm borrifado água nos turistas em áreas populares. Veneza introduziu uma taxa para limitar os visitantes de um dia. No Japão, o Monte Fuji sofre com o lixo e o mau comportamento turístico. Kyoto, famosa por seu distrito de gueixas, tem enfrentado problemas com turistas invasivos. E Seul, com milhões de visitantes, também luta para manter a ordem.
Na minha visão quase sempre distorcida dos fatos – começo a aceitar a correlação entre a idade e a rabugice –, estou convencido de que nem os cavalos aguentam mais o turismo de massa, predatório, especialmente porque envolve as famigeradas selfies, essa prática que transforma a interação humana em uma busca incessante pela melhor imagem de si mesmo. Nunca alcançada, diga-se.
Tudo bem, alguns escolados no assunto dizem que as selfies são uma forma de autodescoberta e redefinição de identidade. Se é assim, alguém precisa avisar os cavalos para, entre coices, closes e mordidas, serem mais tolerantes com a estupidez humana.
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