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Vem aí um novo passaporte?

Por Hayton Rocha 14/06/2023 12h12
Vem aí um novo passaporte?

Descobri que o passaporte se tornou obrigatório nas viagens internacionais apenas no começo do século passado, após a Primeira Guerra. O termo vem do francês arcaico ("passeport"): o papel que autorizava o viajante a passar pelo porto e sair do país.

Havia certa liberdade editorial em sua confecção, um século atrás. Era uma folha de papel dobrada em oito partes, capa de papelão, trazendo dados básicos (nome completo, data de nascimento, nacionalidade etc.), além de breve descrição física do titular, como olhos claros, nariz adunco e cabelos ruivos; e sinais particulares, como lábio leporino, cicatrizes etc.

Ainda bem que a descrição do viajante se limitava aos traços do rosto. Dou por visto o que registrariam a meu respeito na época: cabeçudo, míope, gengivas de macaco, orelhas curtas e sobrancelhas de taturana. As partes íntimas estariam preservadas do escárnio público.

E se a coisa tivesse evoluído para inclusão de traços psicológicos? Seria possível agora extrair dos arquivos descrições interessantes, por exemplo, sobre figuras ligadas ao futebol.

Dá pra imaginar os responsáveis pela coleta de dados, no final do dia, tomando uma cerveja no boteco e cometendo deslizes ético-etílicos:– Viu só o Edmundo? É atormentado, encrenqueiro, prestes a explodir... Pior que Almir Pernambuquinho.

– E o Sávio, aquele que joga no Real Madrid. Triste, depressivo, cai no choro a qualquer instante. É moleque criado com a avó em apartamento, nunca brincou num quintal.

– Pô... E Dodô? Vive rindo não se sabe de quê. Parece que nunca ouviu Frejat cantar que “rir é bom, mas rir de tudo é desespero”.

– Tá escorrendo rabugice nos cantos da boca de Dunga, percebeu?

– Sim! E o olhar gelado de Romário... Típico do sujeito que enfia um estilete até o cabo e não escorre uma gota de sangue da vítima…

Volto no tempo. Dizem que depois que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, um funcionário da repartição de passaportes teria caprichado na descrição de Maria Capitulina de Pádua Santiago, mais conhecida como Capitu: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Um tanto leviana e fútil. Desde pequena só pensa em vestidos e penteados, tem ambições de grandeza e luxo, e outros predicados que evito citar para não cair em tentação”.

O chefe, no entanto, ávido por predicados e sujeitos mais picantes (bota picância nisso!), cobra: “Esqueceu daquela história de olhos oblíquos e dissimulados de cigana, do triângulo amoroso relatado no livro pelo próprio Bentinho, o maridão desconfiado?”

“Há controvérsia, chefe!” – pondera o funcionário, com o dedo indicador em riste! – “Não encontrei vestígios de que Capitu e Escobar chegaram às vias de fato. Nem na cortina nem no carpete. Isso é coisa da cabeça do Bruxo do Cosme Velho, instigando os leitores...”.

“Vai me dizer que eles não...”

“Tá no regulamento, chefe: para fins de emissão de passaporte, pouco importa se Capitu capitulou ou não, como desconfia Bentinho. Aliás, Escobar pode ser carreirista, mas não é paraguaio ou colombiano... Se bem que ninguém precisa cruzar fronteiras para pular a cerca”.

Mais adiante, Escobar morre afogado e as lágrimas de Capitu pelo morto deixaram Bentinho transtornado. Tanto que acabou despachando a esposa para a Europa, onde ela viveria seus últimos dias. Com um passaporte, óbvio!

Com o passar dos anos, a fotografia virou mais um elemento de identificação, embora em nada se pareça com a padronização do documento nos dias de hoje.

Sem regras claras, as pessoas providenciavam uma foto qualquer. Posavam de chapéu, de véu, tocando piano, chupando picolé ou tricotando. Reaproveitavam até fotografias antigas, recortando o próprio rosto, ou arrancando a imagem de outro documento.

Mas contexto é importante. Um chapéu sobre a cabeça de um matuto, por exemplo, não passa de um simples utilitário de proteção contra o sol. Sobre a cabeça de uma primeira-dama, apenas um adorno numa cerimônia. Na fronte de um cardeal, um símbolo de poder. Na mão estendida de um esmoler, a vergonha (ou o vício) de pedir e a esperança de viver numa nação mais solidária.

Hoje, para confecção do passaporte, deve-se manter uma expressão neutra e a boca fechada na foto. Foi assim, aliás, que nasceu uma fábrica de monstros. Reveja a sua imagem no seu documento e diga se não tenho razão.

Tudo isso me fez recordar da figura de um baixinho de fraque puído, bigode de broxa, chapéu-coco e bengala, que nunca precisou de passaporte para atravessar fronteiras e ser reconhecido em qualquer lugar. Sem dizer uma palavra, virou cidadão do mundo.

Se ainda estivesse entre nós, Chaplin, em nome dos ambientalistas, diria em gestos, coberto de razão: “Já passou da hora das nações criarem um novo passaporte. Em papel não dá mais!”

Concordo. Talvez um microchip no dedo mindinho do pé ou na omoplata (finalmente, um deles teria utilidade prática!), com os dados de identidade, biométricos e vistos do viajante, simplifique as coisas neste mundão cada vez mais complicado e dividido.

Fica a dica. O que você acha?