Basta um copo d'água
Tudo bem, era o delegado de uma cidadezinha do interior, mas, antes de tudo, meu velho amigo havia décadas. Porém foi inflexível naquela tarde:
– De jeito nenhum! Tu entende de banco. Deixa que cuido de meu trabalho.
– Ele vai morrer à míngua, velho!
– Sei o que tô fazendo, não te mete…
Enquanto ele conversava ao telefone, eu circulara pela delegacia e dei de cara com um bêbado deitado numa cela, nu cintura acima, cheirando a chuva, suor, cerveja e vômito, a implorar num fiapo de voz: “… Um copo d’água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede!”
Tive pena. Preso na noite anterior, num comício na praça da Matriz, ameaçara o prefeito com uma peixeira. “Porte de arma branca e tentativa de homicídio”, segundo o boletim da ocorrência.
O prefeito defendera no palanque a candidatura de seu vice à sucessão municipal, enaltecendo supostas virtudes: “É pai de família decente, trabalhador, honesto, comprometido com os verdadeiros cidadãos...”
Nisso, um pacato cidadão que a tudo assistia da mesa de um boteco (e acabaria preso) interrompeu o discurso falando em voz alta, provocando risos na plateia:
– Dá o rabo pra ele...
– O quê cê disse, cabra safado!? – reagiu o orador, com fama de garanhão, valente e desbocado – Eu como o seu e o dele, seu filho da puta!
– Safado é você! Desça daí se for homem! – retrucou o outro com uma faca que, em meio segundo, abriu uma clareira amazônica na multidão.
O prefeito refugou ou não teve tempo de descer do palanque. Três policiais desarmaram o desafiante, conduziram-no à delegacia, algemado e aos bofetões.
Eu nada sabia quando encontrei o sujeito preso, quase 24 horas depois, numa ressaca industrial, privado de água “para pensar na merda que fez”, segundo um dos policiais.
Quis oferecer uma garrafa de água gelada para atenuar o sofrimento, mas percebi que não seria sensato interferir na liturgia em curso sem consulta prévia à autoridade no recinto. Amigos, amigos, algemas e tapas à parte.
Nunca fui de reclamar contra a bebida e suas consequências, embora já não beba mais como antes. Já gostei e Deus sabe com que desgosto lamentei os vacilos a que alguns goles de vinho a mais me levaram.
Nas sextas-feiras, batia uma euforia inexplicável que me empurrava às taças e pratos. Aliás, não fosse a ameaça de alterações metabólicas e neurológicas, levando os seres humanos à falência precoce de múltiplos órgãos (fígado, estômago, pâncreas, cérebro etc.), não tenho dúvida de que os próprios médicos nos aconselhariam a beber mais vinho, como forma, inclusive, de tolerar decepções sem enlouquecer.
Nem sei se entendia de serviços bancários, como se disse a meu respeito naquela tarde, mas nunca vi ninguém procurar um banco por prazer, como quem vai ao boteco, ao cinema ou ao restaurante. Por isso, nunca neguei a ninguém um copo d’água (ou um cafezinho) antes de iniciar uma conversa. Tinha comigo que desarmava os espíritos.
Já em casa, noite alta, pensava no que teria levado aquele sujeito a beber tanto, solitário, mesmo diante de uma multidão. No porquê o elogio ao candidato o fizera desejar ao prefeito uma das mais dolorosas experiências, segundo relatos (óbvio!). No que teria acontecido se os policiais não fossem tão ligeiros.
Há pouco mais de três décadas, eu sabia que se instalara no Brasil um certo desencanto com a classe política, a ponto de o próprio irmão do presidente da República ter apresentado provas do envolvimento dele num caso de desvio de dinheiro. Usou-se a campanha eleitoral como caixa 2. Desviaram-se verbas públicas criando-se empresas fantasmas e contas no exterior. Pior: até ali, ninguém havia sido preso, tomado uns sopapos, nem obrigado a passar horas sem um copo d’água sequer.
Hoje, não sei por onde andam ou o que fazem (se é que ainda se mexem) os personagens deste caso, nem gostaria de perguntar a meu amigo, já aposentado, mas me pego aqui especulando sobre possíveis desdobramentos.
Vai ver o cidadão, ao ser liberado, sóbrio, voltava pra casa quando foi vítima de uma emboscada, sendo espancado até desfalecer num monturo qualquer. Capangas ligados ao prefeito circulavam nas proximidades, mas, por falta de provas, deu-se o caso por encerrado em questão de minutos.
Ou teria encontrado o prefeito na feira livre, comprando os ingredientes para um regabofe com seus correligionários. Sentindo-se ultrajado por fatos precedentes, tomou das mãos do açougueiro uma serra e golpeou o pescoço do garanhão (que, segundo boato, vinha dando em cima de sua mulher, uma servidora lotada na cantina da prefeitura).
Ou, mais provável, depois de alguns insultos recíprocos e de um copo d’água para cada um, ambos recordaram do troca-troca de figurinhas na hora do recreio no grupo escolar e tudo acabou num abraço apertado. Daqueles com tapas nas costas que beiram o limite entre a cordialidade e a fratura de costela.
Não é por nada, mas continuo convencido de que basta um copo d’água para diluir alguns espíritos inquietos em certas ocasiões. Até a próxima decepção, pelo menos.
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