Zé Celso Martinez Corrêa e sua presença imorredoura
Nunca assisti uma peça de Zé Celso Martinez Corrêa. Tenho vergonha dessa falha, afinal ele revolucionou as artes cênicas brasileiras – como pode ser checado nas muitas opções de leitura (e vídeos, áudios) sobre a obra dessa genial criatura que encerrou sua fantástica carreira no dia 6 de julho, em cuja boca da noite essas toscas linhas estão sendo escritas.
Zé Celso se foi aos 86 anos intensamente vividos. Inopinadamente, pois muito ainda se esperava que vivesse, e sempre de forma revolucionária.
Um incêndio irrompeu no seu quarto, no dia 4 de julho, e não permitiu que ele conseguisse sair a tempo. Foi socorrido, mas com metade do corpo queimado. No apartamento estavam os atores Victor Rosa, Ricardo Bittencourt e Marcelo Drummond – este marido de Zé Celso. Todos foram hospitalizados, mas o mais grave era o veterano ícone. Não conseguiu se recuperar.
ÍCONE SAGRADOZ
é Celso se casou exatamente um mês antes de sua morte. No dia 6 de junho, ele e Marcelo Drummond oficializaram uma união que já durava 35 anos numa festa que foi para as manchetes das páginas culturais. As bodas causaram rebuliço e foram consideradas um momento de celebração e de reafirmação das históricas bandeiras de luta do fundador do Teatro Oficina, sempre em defesa da liberdade, arte e cultura, e em combate à todas as formas opressivas e discriminatórias.
Para quem entenda de teatro, Zé Celso é uma divindade, um espírito imortal, irrequieto e indomável em direção, inovação, revolução. Para quem nunca viu uma obra cênica do dito monstro sagrado, basta ter ouvido falar da “Rei da Vela” (peça de Oswald de Andrade), ou “Roda Viva”, ou “Ópera do Malandro” (obras de Chico Buarque). Montadas, com avassalador sucesso, pelo genial criador.
Já ouviu falar do Oficina? Não? No globo. comtem um ótimo resumo. Lá está dito que “desde o final dos anos 1950 é uma das mais importantes companhias brasileiras, há 65 anos em atividade. O grupo tem origem no Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco”. E que “a companhia obtém repercussão montando textos como ‘Pequenos burgueses’ (1963), do russo Máximo Gorki (1868-1936), com influências do método Stanislavski. Com o golpe militar no ano seguinte, a peça é censurada e obrigada fazer cortes”.
Desde os anos 70, ouço e leio histórias impactantes sobre esse grande personagem, sobre as agressões da extrema-direita contra seus trabalhos, os atentados contra atores e atrizes de seu grupo, sobre sua prisão por quase um mês durante a ditadura, sobre seu exílio e seu retorno, sobre o palco original do Oficina (do tipo Arena, como passarela central), sobre a interação entre público e palco etc., etc. O próprio edifício do Oficina, projetado por Lina Bo Bardi, em 1984, passou a ser mais uma história, mais uma lenda real.
VER E VER, EIS A QUESTÃO
Mas ver mesmo uma peça de Zé Celso, nunca vi, como disse no começo. Vergonha só amainada quando li um comentário da maravilhosa Cláudia Maria, atriz que passou por Maceió e daqui partiu, com o marido Carlos, no final dos anos 70, para invadir a Holanda. Lá ficaram e lá construíram, em Amsterdã, o Teatro Muganga. Escreveu ela: [Zé Celso] “E eu nem fui no Teatro Oficina.../ Nem tive a felicidade de te encontrar.../ E você preparando um trabalho sobre os mitos da floresta, a queda do céu, vem o fogo e te leva desta dimensão terrestre/ Você fogo de inspiração, marco do Teatro Brasileiro! Livre. Revolucionário Zé!/ Vai na luz grande José Celso Martinez Corrêa/ Vai na luz! Para a luz! / ‘Boa noite amado príncipe! Revoadas de anjos cantando te acompanhem ao teu repouso’ (Shakespeare)”.
Se Claudinha não viu, se Carlos não viu, se a turma do Munganga não viu, estou absolvido por não ter visto também. Mas me penitencio, afinal não moro na Holanda.
Entretanto, lendo reportagens sobre Zé Celso, descobri que ele foi o diretor, em Lisboa, do documentário “O Parto”, ousada (e simples) produção sobre a Revolução dos Cravos. Ah, esse eu vi! Aí por 1979, ou 1978 mesmo, apareceu a oportunidade de exibir esse filme em Maceió. Sobre os detalhes, cito Chicó: “Não sei, só sei que foi assim”. O filme faz um ousado paralelo com o retorno da Democracia e um parto natural. Colando depoimentos sobre a derrubada da ditadura salazarista em Portugal com cenas reais do nascimento de uma criança, o documentário causou frisson, até porque naquela geração (fora quem era da Medicina) ninguém nunca tinha visto um parto natural. E todo Brasil queria ver a Democracia vir à luz.
Puxa, assisti “O Parto”! Vi um trabalho de Zé Celso! Lógico que aquele filme só poderia ter sido concebido e dirigido por pessoa dotada de visão artística não-convencional. Vou caçar na internet para assisti-lo novamente, 45 anos depois.
Viva Zé Celso Martinez Corrêa! Vida eterna à sua obra e à sua memória!
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