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e outros casos” (2021) e "Frestas" v(2022).

Novas noites tropicais

Por Redação 08/12/2023 22h10
Novas noites tropicais

Há 20 anos, quando li “Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais”, obra do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta, fiquei só imaginando como teria acontecido um duelo doido, emocionante e técnico, no Festival de Jazz de Montreux, na França, em 1979. Bem depois pude ver as imagens, com a criação da plataforma de vídeos YouTube.

A gaúcha Elis Regina era a grande estrela da “Nuit brésilienne”. Ao lado do maestro paulista César Camargo Mariano e de um grupo de músicos, ela montou sua apresentação com grandes sucessos, embora quase nada de cunho político e, apenas por conta da exigência dos organizadores do festival, um pouco de Bossa Nova (a sua voz forte não batia com cantar baixinho e suave do movimento criado pelo baiano João Gilberto).

Hermeto Paschoal, alagoano de Lagoa da Canoa, arranjador e multi-instrumentista reconhecido nos meios jazzísticos até por Miles Davis (um dos mais influentes músicos do século XX), fez a abertura do evento. E arregaçou: foi aplaudido de pé por vários minutos.

Meia hora depois, Elis entrou no palco. Cantou com a categoria de costume, mas sem ousar muito. Para os experts no assunto, o repertório era conhecido, os arranjos discretos, a performance com técnica apurada, mas de emoção contida. Ainda assim, todos ficaram encantados com sua afinação e seu timbre de voz. Muitos aplausos também, menos, é verdade, do que aqueles oferecidos a Hermeto.

Hermeto, aliás, que assistira ao show de Elis na coxia, voltou ao palco, atendendo aos apelos vindos da plateia. Recebido com uma espetacular ovação, sentou-se soberanamente ao piano. Elis sabia que o brilho do “bruxo” fora bem mais intenso. Aparentemente frustrada, ela também retornou, disposta a provar quem de fato era a grande estrela no céu da “Nuit brésilienne”.

“...Silêncio total, piano e voz. Hermeto começa a tocar Corcovado e, quando Elis começa a cantar, suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis – ou para qualquer cantor do mundo – se manter dentro da tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe... E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não ensaiada. Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreira... Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, a cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso... Foram delirantemente aplaudidos...”, assim escreveu Nelson Motta.

Quando Hermeto veio de Garota de Ipanema (que a gaúcha não gostava e dizia que jamais a cantaria), Elis acusou a pancada. “Mas logo se recuperou e cantou, com todo vigor, como se fosse a última música de sua vida, improvisou como uma negra americana, virou a música pelo avesso, provocou Hermeto, voou com ele diante da plateia eletrizada...”, garantiu Nelsinho.

Com o público em transe, as duas estrelas partiram para a apoteose de Asa Branca, “o baião de Luiz Gonzaga em ambiente free-jazz... harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmo e de andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizadas por dois virtuoses”, concluiu Motta.

Passados 44 anos da “Nuit brésilienne” em Montreux, circula agora um vídeo nas redes sociais, reproduzido por vários sites noticiosos, que está causando furor entre os internautas. Nele, a cantora paulista Linda Mel, criada em Pernambuco, vocalista da banda Top do Brasil, aparece “servindo” cachaça coada na peça mais íntima de seus trajes.

Em resumo, a artista chama para perto do palco uma fã que assiste ao show, abaixa a calcinha, filtra e derrama sobre ela a bebida destilada, em meio a uivos e urros do público, cantando a trilha sonora da hora: o hit “Cachaça na Calcinha”.

Segundos antes, ansiosa pelo momento em que tomaria o néctar de cheiro e sabor discutíveis, a fã partira com tudo para cima de sua deusa, que pediu moderação: “...Tem que ser com calma! Você quer tirar minha calcinha?”. E a criatura se mostrou ainda mais empolgada, preocupando Linda Mel: “Esta mulher vai me rasgar toda, segurança!”, queixou-se, de maneira não muito convincente, claro.

Trecho do fundo musical cita uma certa funkeira que se popularizou por shows com performance nos limites da irresponsabilidade cristã: "Eu e a Pipokinha somos diferenciadas, na hora de fazer amor 'nós gosta de uma lapada'. É uma pancada que nos deixa excitada, bate na nossa bunda. Linda Mel e Pipokinha topa qualquer parada, dá cachaça na calcinha, virote na madrugada...”.

Noves fora o julgamento de cada leitora ou leitor, dinossauros como eu não compreendem bem os meandros dessas novas noites tropicais, suas exultações e seus desvarios.

A certeza da finitude, no entanto, nos traz o consolo de que seremos poupados de certos asteroides, de algumas cenas grotescas. Mas às vezes não dá tempo.