Benedito anjo (releitura de um texto antigo)
Benedito sempre foi um homem devotado a Deus. Nas festas da padroeira, quando ainda menino, sua mãe o vestia de anjo, adornando-o com asas brancas e largas, uma coroa dourada sobre os cachos. O menino brilhava na procissão, orgulhoso de seu papel celestial.
Descia o morro ao som das beatas cantando “Ave, ave, ave, Maria”, um refrão que se repetia como um mantra. Para ele, aquilo não era um simples cântico; era o coro dos querubins. Foi nesse ambiente, anos depois, que ele conheceu Dorinha. Morena brejeira, de formas fartas e alma temente a Deus, ela o conquistou com a sua dualidade – um corpo talhado para o pecado e uma devoção incontestável ao sagrado.
Casaram-se na igreja matriz e seguiram para uma vida pacata, de trabalho, oração e uma fé que os guiava. Na noite de núpcias, sob a luz bruxuleante das velas, deitaram-se, ela com sua pureza de anjo e ele, ansioso, tomado pela luxúria. Mas, na hora da entrega, Benedito sentiu um som surgir no fundo da mente, um eco antigo e familiar: o canto das beatas, os “aves” que ele conhecia tão bem. Quanto mais o amor se intensificava, mais alto o coro se tornava, até que ele já não enxergava Dorinha, mas um círculo de senhoras velhas, com véus e terços, cercando a cama.
Apavorado, Benedito fugiu. Trancou-se no pequeno banheiro, onde mal cabiam ele, a pia e o vaso. Lavou o rosto suado, piscando os olhos na esperança de se libertar das visões, mas onde quer que olhasse, lá estavam elas, as velhas beatas, imóveis, com suas expressões severas, rezando em torno dele. Dorinha, aflita, batia na porta, mas ele não ouvia. O coro em sua cabeça explodiu, e ele, tomado pela loucura, começou a cantar o “ave” de sua infância, até desmaiar de exaustão.
O tempo passou, mas o tormento não. Buscaram ajuda profissional, sem sucesso. Dorinha, cada vez mais aflita, entregou-se à fé, confessando-se todos os dias, na tentativa de apaziguar sua dor. Benedito, de sua janela, via a esposa ir à igreja, sempre com o mesmo semblante de resignação. O perfume de flores, que ele tanto adorava, foi aos poucos sendo substituído pelo forte aroma de patchuli, que ela usava para suas visitas ao confessionário.
A semente da desconfiança brotou no coração de Benedito. Certo dia, seguiu a esposa até a igreja, esperando à porta. Entrou silenciosamente e aproximou-se do confessionário, onde escutou estalos ritmados, como madeira que cede sob um peso indevido. Ao fundo, gemidos – um som que ele conhecia bem, o timbre de uma voz que só o amor pode decifrar.
Desesperado, correu de volta para casa. Abriu o velho baú, vestiu suas asas de anjo, agora puídas, e agarrou o revólver herdado do pai, enferrujado pelo tempo. Caminhou pelas ruas, as crianças rindo ao ver o homem vestido de anjo. Ao chegar à igreja, escancarou a porta do confessionário e disparou. Depois, ajoelhou-se, fez uma prece e, entre lágrimas, cantou um último “Ave, Maria” antes de disparar a derradeira bala contra a própria têmpora.
Ali, no chão frio da igreja, jaziam Dorinha, o jovem amante e Benedito, o anjo. Em volta, uma pequena multidão se formava, velas acesas em devoção, enquanto, num sussurro coletivo, todos entoavam o eterno cântico: “Ave, ave, ave, Maria…”
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