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Chico ( releitura de um texto antigo)

Por Rainey Marinho 11/10/2024 00h12
Chico ( releitura de um texto antigo)

O silêncio.
A ausência total do som.
Um nada que não apenas tortura a alma, mas a faz sentir um desespero mudo, um grito que não se ouve, mas que rasga por dentro.

As luzes, preguiçosas, vacilavam na rua suja, iluminando os transeuntes. Eles falavam, mexiam as bocas, gesticulavam, mas nenhum som saía. Um balé de sombras, com sorrisos que oscilavam entre a ironia e a melancolia, prisioneiros de amores vagabundos, clandestinos, daqueles que nem precisam ser confessados. Pequenos sorrisos, exagerados, tímidos, sórdidos. Chico os observava e se perguntava: era aquilo a vida?

Os corpos suados se roçavam, movendo-se como predadores em busca de algo – talvez redenção, talvez esquecimento. Da penumbra escarlate, Chico via tudo. Seu mundo era silêncio, mas o cheiro era real. Suor, álcool, e mais um algo, indefinível, o cheiro da miséria humana. E era ali, no meio de tantos corpos, que ele se perguntava: era isso o máximo que o mundo poderia lhe oferecer?

Foi nesse ambiente que Chico veio ao mundo. Magro, olhos fundos e negros, a pele esticada como a de quem já nasceu envelhecido. Enxergava longe, muito longe. E seu olfato, ah, esse era apurado. Mas os ouvidos… esses nunca souberam o que era som. Nasceu surdo.

Diziam que foi culpa da maldita sífilis que a mãe – uma mulher esquecida, levada pelas noites – contraiu. Ela já estava morta, e com ela se foi qualquer certeza sobre Chico. O que ficou foi uma ausência. No lugar do colo materno, vieram as mães momentâneas – mulheres que o tomavam durante o dia, mas ao cair da noite o deixavam à própria sorte.

Chico não se lembrava dela. Nunca viu seu rosto, a não ser nas histórias que lhe contavam – histórias de uma mulher que nunca foi mãe, de uma vida que nunca foi lar. Mas às vezes, em seus sonhos, ela aparecia. Seu rosto sem forma, sua voz sem som, e ele acordava com a certeza de que, mesmo sem conhecê-la, já a odiava.

Chico fez de seus olhos a sua principal arma. E foi com eles que, numa dessas noites, espiou o que não devia. Viu Gleidianne – ou Sharon, como preferia ser chamada – em seus momentos de amor de aluguel com o juiz de menores. Ele, o homem da lei, aquele que vinha toda semana inspecionar o local onde o corpo de Sharon se vendia e a moral se comprava.

O juiz o pegou pela mão, como quem leva um filho. Mas seus olhos traíam outra coisa. Eram olhos que já haviam visto demais, feito demais. Eram olhos de quem julgava, mas não sabia mais distinguir o certo do errado. Ele era a lei, mas também era parte do que Chico odiava.

Num gesto paternal – ou quem sabe hipócrita –, o juiz o levou ao Conselho Tutelar, e dali rapidamente ao Reformatório Deus Maior.

Entre as paredes daquele inferno de pedras e gritos, Chico aprendeu o que era o ódio. Aprendeu a ler lábios e a entender que o mundo não tem piedade de quem não sabe gritar. A primeira palavra que ele aprendeu a ler foi “odiar”. Odiava tudo – as mães que não teve, o pai que não conheceu, os outros garotos e os cuidadores. E, acima de tudo, aprendeu que o mundo é um circo, e a única coisa que não se pode ser nesse espetáculo grotesco é o palhaço.

Um dia, Chico fugiu.
Roubou um ônibus, pegou celulares, algum dinheiro, e sumiu.

Anos depois, ele já era outro. O chefe do tráfico de um morro. Comandava a venda de drogas, conhecia a fina flor da sociedade – políticos, artistas, celebridades. Todos o reverenciavam. Chico, agora, tinha poder.

Mas, em noites solitárias, lembrava-se da infância perdida. Um passado que ele enterrara, mas que, de vez em quando, assombrava seus sonhos. Às vezes, sentia falta do que nunca teve – não do amor, mas daquilo que o amor deveria ser.

Dois anos depois, em uma troca de tiros com a polícia, Chico caiu. Tinha 25 anos.

Quando o policial se aproximou, vendo-o agonizante, ainda teve a chance de perguntar:
– Qual é seu nome?

Chico, lendo os lábios, respondeu com esforço:
– Chico.

– Seu nome completo? – insistiu o PM.

Num último suspiro, o garoto da casa escarlate, o menino que nunca conheceu o som, sussurrou:
– Brasil. Meu nome é Chico Brasil.

Os panfletos do governo espalhados pelo chão, com promessas de um futuro melhor, foram pisoteados pelos pés sujos dos policiais. Chico, vendo aquilo, quase sorriu. Sabia que as promessas não falavam a sua língua. Ele, Brasil, nunca teve chance de escutá-las.