Traquinagens do acaso
Não posso garantir, mas desconfio que, em 1949, o imigrante libanês José Fares Haddad Lupus tenha sido vítima de uma das clássicas gafes datilográficas dos cartórios de antanho. Lá em Orós, no interior do Ceará, ao registrar o caçula, o nome pretendido era Raimundo Wagner. Saiu de lá, no entanto, com um Raimundo Fagner. Dona Francisca, a mãe, deve ter suspirado fundo. No fim, quem diria, o erro se revelou um golpe de sorte: o menino cresceu com um nome diferente e virou estrela de primeira grandeza, um dos maiores cantores e compositores do Brasil, dono de mais de 40 álbuns e uma legião de fãs espalhados pela América Latina.
Algo parecido aconteceu anos depois, em Penedo, Alagoas. Um amigo meu quase se chamou Wagner, mas seu pai (que nunca soube do caso envolvendo o imigrante libanês) saiu do cartório com a certidão de nascimento do filhão Wanger. Pode uma coisa dessas? O escrivão de Penedo superou o de Orós no quesito criatividade. Erro humano ou ato divino, pouco importa. Eram dois "Wagners" a menos no mundo. No Ceará, Fagner. Em Alagoas, Wanger, que, por obra do acaso, hoje trabalha lá pelas bandas de Fortaleza.
Fagner, conheço de longe, pelas ondas do rádio e pelas telas da TV. Foi uma das vozes que ecoaram do Nordeste para o Brasil, junto com Alceu Valença, Belchior, Ednardo, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, entre outros. Cada um, à sua maneira, misturou raízes regionais com elementos urbanos, mas Fagner escalou alguns degraus a mais: seu canto alto, às vezes esganiçado, dividiu opiniões. Mesmo assim, ninguém nega o talento que o levou a parcerias com figuras míticas como Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão.
Já Wanger, ou melhor, Gasolina – apelido que lhe caiu como um boné por causa da velocidade nos campinhos de futebol –, conheço de perto. No final dos anos 70, trabalhávamos na mesma empresa em Alagoas e fazíamos de conta que jogávamos. Enquanto eu, centroavante, esperava cruzamentos na área adversária, ele, ligeiro feito boato, corria como um Fórmula 1 pela beirada do campo, quando boa parte da turma engasgava o motor no álcool. Com trocadilhos.
Anos depois, ele foi para o Rio, eu para Brasília, e só nos reencontramos em 1990, na Bahia. Casados e com filhos, dividíamos mais do que memórias: nossa pobreza era quase um patrimônio. Nossas “namoradas” criaram uma amizade que dispensava formalidades, e entre confidências, gargalhadas e lágrimas, atravessaram bons e maus bocados.
Mas a estrela de nossos encontros em família era sempre Wanger, com sua simpatia única. Churrasco no quintal? Improvisava uma churrasqueira com quatro paralelepípedos e uma grelha enferrujada, torta. A trilha sonora? Dois CDs: Fagner e Sinatra. “Nacional ou internacional?”, ele perguntava, se acabando de rir. Quem escolhia sabia que ouviria a mesma música até o sol pedir arrego em Vilas do Atlântico, nos arredores de Salvador.
Foi num domingo como outro que a molecagem me pegou de jeito. Voltávamos da praia, eu e meus dois filhos (de 13 e 10 anos), cansados de tanto mergulho. Gasolina e os seus ficaram na barraca Odoyá Iemanjá. Com o corpo ainda anestesiado pelas cervejas do dia, tive uma ideia estúpida: tocar a campainha de uma mansão e sair correndo. Sem avisar os meninos, apertei o botão e disparei feito um doido ou um dos capitães de areia da obra de Jorge Amado.
No auge da traquinagem, meu pé encontrou uma pedra saliente. Foi um encontro desastroso: a danada nem se mexeu e meu dedão quase foi amputado. Sangrando e mancando, cheguei ao carro, onde minha mulher e nossos filhos me olhavam com aquele julgamento mudo que dispensa palavras: "Isso é papel de pai?", devem ter pensado.
Na segunda-feira, lá estava eu, de paletó e gravata, um pé no sapato, outro numa sandália. Liturgia do cargo ou palhaçada fashion, cada um que tirasse suas conclusões. Na reunião matinal, tentei manter a compostura e convencer os colegas de que o curativo era herança de uma pelada no sábado. Wanger, na maior cara dura, ainda ofereceu um par de chuteiras para a próxima. O sorriso apertava os olhos e fazia escorrer óleo de peroba pelos cantos do bocão.
Dias depois, a ferida cicatrizou, e o episódio caiu no esquecimento. Mas bastou um jantar recente em Maceió, regado a pão, vinho e risadas, para espreguiçar a criança que cochila dentro de nós. E lá estava, esperta e saltitante, pronta para novas travessuras.
No fundo, é isso que nos salva: rir dos tropeços e relembrar velhas histórias com quem compartilha o peso – e a leveza – de nossos caminhos. O acaso pode até pregar peças, sim, mas são as amizades que nos ajudam a transformar pedras em degraus. Viver também é equilibrar-se entre gafes de cartório, churrasqueiras improvisadas e estrepolias inesquecíveis.
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