Fome, fúria e o mistério do pavão
Não sei vocês, mas sou daqueles que, ao ver um jornal ou revista antigos, não resiste à tentação de revisitar ecos de outros tempos. Quando vejo um recorte interessante, mergulho profundo numa viagem quase sem volta: o que terá acontecido com os protagonistas dessas histórias? Onde estão agora? Foram felizes? Deram certo ou desapareceram nas entrelinhas da vida?
Dias atrás, me deparei com um recorte da Folha de São Paulo, de 12 de janeiro de 2004, com um título tão surreal quanto o enredo: “Homem é espancado após matar pavão em praça no centro do Rio de Janeiro”.
Paulo Roberto de Oliveira, 37 anos, desempregado e faminto, perambulava pelas ruas quando decidiu que um pavão, mais ornamentado que o próprio Clóvis Bornay no Carnaval, seria seu jantar. Não sabia que a ave, mais que um enfeite da fauna urbana, era mascote da comunidade de travestis da Praça da República.
Foi aí que entrou em cena o "bloco da fúria". Ao verem Paulo carregando o pavão desfalecido, os travestis iniciaram um verdadeiro carnaval de pedradas, pontapés e tapas. No desfecho, digno de seriado de TV, o miserável acabou com o braço preso às grades da praça, pendurado como um Judas em Sábado de Aleluia, até ser resgatado pelos bombeiros para ser indiciado por crime ambiental. Já os travestis, sumiram antes que pudessem ser chamados para esclarecer o "quase abate" de outro animal, da espécie supostamente o mais racional de todas.
Já se passaram mais de duas décadas. O que aconteceu a Paulo? Está vivo aos 57 anos? Tem filhos e netos? Entrou na política? Fez carreira como influencer? Continua pulando grades na madrugada ou encontrou algum emprego entre uma reforma trabalhista e outra, podendo agora pagar boletos e impostos, ser chamado de consumidor e contribuinte? Quem pode me dizer?
É certo que o desemprego (ou emprego informal) continua um monstro de setenta cabeças, crescendo com uma voracidade comparável à fome daquele fatídico dia, embora as estatísticas oficiais nem sempre reflitam esse estado de coisas no lado debaixo da Linha do Equador.
Mas não é só o destino de Paulo que me intriga (uma entre 250 mil almas em situação de rua no Brasil), e sim também o destino do coitado do pavão. Aquela inocente criatura, que poderia ter saciado a fome de outros viventes, acabou despertando a fúria desmedida de outros. Terá ele deixado algum legado proteico digno de nota? Chegou a transferir a sua carga genética para alguns filhotes?
Com meia dúzia de interrogações na cabeça, me transporto à canção “Pavão Mysteriozo” (da trilha sonora da telenovela global Saramandaia, de Dias Gomes), do cearense Ednardo que, nos anos setenta, carregava em suas asas críticas veladas à realidade opressora do regime militar.
O pavão daquele tempo não era nenhum desses jogadores de futebol chatos, deslumbrados e presunçosos, estrelas de um mundo midiático que se cotam acima daquilo que realmente valem. Nem alguns emplumados de gravata e paletó que conheci ao longo da minha vida profissional. O pavão de Ednardo era uma bela metáfora de voo, de liberdade, de fuga de uma realidade sufocante. E o folheto de cordel que inspirou o artista cearense (“O Romance do Pavão Misterioso”, publicado em 1923, por José Camelo de Melo Resende), tinha voltado a circular em um Brasil que sonhava voar para longe da repressão.
Vinte anos depois, talvez Paulo, se ainda circula por aí (caso tenha se poupado do vexame de morrer tão moço, como canta Ednardo!), seja só mais um rosto perdido entre estatísticas que servem ao conforto de quem vive fora da linha de fogo. Sua fome e sua fúria seriam testemunhas silenciosas de um sistema que perpetua a exclusão e alimenta a indiferença.
E o pavão? Mais do que uma ave, simboliza o orgulho ilusório de uma nação que valoriza cores vibrantes, mas esconde sob as penas a escuridão de quem ignora os vulneráveis. Como no cordel de José Camelo, esse pavão também tenta voar para longe, mas suas asas estão presas às grades da desigualdade, eternizando a miséria.
E nós, prostrados em nossos sofás, seguimos assistindo a esse drama social como se fosse só mais um episódio de uma novela que nunca termina. Talvez sejamos os verdadeiros pavões: encantados pelas aparências de um progresso ilusório, enquanto a fome, a injustiça e a exclusão permanecem. Fechamos os olhos, mas a fome – não só de comida, mas de dignidade – continua nos encarando.
Vou parar com essas "viagens" sobre recortes de jornais e revistas antigos. Já basta o noticiário do dia. Se bem que o problema não está em revisitar esses recortes, mas em nossa incapacidade de transformar as histórias que eles contam. Porque, a rigor, todo recorte é um espelho: reflete o que fomos e nos mostra o que ainda podemos ser.
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