“O Ano que me Visitou”

Hoje de manhã, quando o sol acordou antes de todos, como sempre faz neste pedaço
de mundo onde o verão se instala sem pedir licença, eu me levantei. Não porque
quisesse, mas porque a noite me empurrou, sem piedade, para fora de seu abrigo. Foi
uma noite bruta, dessas em que o sono se ausenta como quem não sabe voltar para
casa. Meditei, rezei, procurei no silêncio alguma forma de anestesia para a mente
inquieta, mas nada adiantou.
Fui à praça em frente à minha casa. Sentei-me num banco que parecia guardar memórias
mais antigas que as minhas. Fiquei ali, vendo as pessoas cruzarem a manhã como quem
atravessa um rio. Eram homens e mulheres com cães que caminhavam tão apressados
quanto seus donos, todos focados em chegar a algum lugar. Os “bom dias” eram raros,
substituídos por acenos de cabeça, como quem economiza palavras para outra ocasião.
Eu, imóvel, inclinei a cabeça para trás, deixando o sol derramar sua luz sobre a minha
pele cansada.
Foi nesse momento que ele apareceu. Um velho, muito velho, carregando nos braços um
menino pequeno, pequeno demais para saber o que era o mundo. Ele se aproximou com
passos lentos, tossindo uma tosse cheia de tropeços, como quem carrega dentro do
peito a idade do tempo. Mesmo assim, olhou-me com olhos gentis e disse:
– Bom dia.
Respondi com a mesma saudação, curioso. Ele sorriu, mas foi um sorriso feito com os
olhos, enquanto os lábios guardavam o esforço para não provocar mais tosse. Depois de
um breve silêncio, ele falou:
– Eu sou o Ano Velho.
Fiquei surpreso. Não sabia o que dizer. Ele continuou:
– Vim saber o que achou de mim.
Respirei fundo antes de responder. Disse-lhe que tinha sido um ano difícil. Um ano de
intolerâncias, cansaços e batalhas que pareciam não ter fim. Ainda assim, reconheci que
ele me trouxera saúde, projetos, e a resistência necessária para enfrentar mais um ciclo.
– Mas e a felicidade? Você a encontrou? – ele insistiu.
Não soube responder. Disse-lhe que ainda não tinha feito esse balanço, e que talvez
aquele banco de praça não fosse o lugar certo para tal reflexão. Ele riu. Uma risada leve,
quase um sopro.
– E qual seria o lugar certo? Uma sala cheia de livros? Uma festa barulhenta? A felicidade
não se deixa capturar por cenários. Ela está onde você a coloca.
Concordei, em silêncio. Depois de um tempo, confessei:
– Estou cansado. Aos 56 anos, a vida pesa.
Ele suspirou.
– Eu também estou. Por isso estou indo. Deixo tudo nas mãos desta criança – disse,
apontando para o menino em seu colo. – Ele é o Ano Novo. Nascerá em breve. E você, o
que espera dele?
Olhei para o menino, tão pequeno, tão alheio às perguntas que carregava. Respondi,
com honestidade:
– Não sei. Não sou dono do meu destino. Há forças que nos puxam e nos empurram, e
eu apenas tento caminhar no meio disso tudo.
O velho sorriu outra vez, paciente.
– E se pudesse escolher, o que valorizaria mais?
Fiquei em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Por fim, disse:
– Não prometerei nada, nem a ele, nem a mim mesmo. Promessas são gaiolas. Prefiro a
liberdade de construir cada dia, de trabalhar, de acreditar. Há algo maior que nos guia,
que nos perdoa quando falhamos, mesmo quando não sabemos perdoar a nós mesmos.
O velho assentiu, satisfeito.
– Então não prometa. Apenas viva. Ele vai nascer, vai chorar, sorrir, cair e levantar. Cuide
de si, e estará cuidando dele.
Disse isso e foi embora, deixando no ar o som de sua tosse e o eco de suas palavras. O
sol já estava forte demais. Entrei em casa, certo de que a vida não é feita de grandes
resoluções, mas de pequenos gestos que, somados, traçam o caminho. E assim seria o
meu norte: viver. Apenas viver.
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