Não deu certo, Brigitte
Ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória
Há duas semanas, publiquei neste espaço uma crônica sobre Brigitte, ou melhor, Abigail Alves dos Prazeres. Lenda viva dos casarões do bairro portuário de Jaraguá, em Maceió, reinou como diva do cabaré Night and Day. Generosa e irreverente, ela deixou uma marca inapagável em quem teve o privilégio de conhecê-la. No início deste ano, aos 91 anos, Maceió se despediu dela com um cortejo único: lágrimas e celebração, embalados pela canção "Pagu", de Rita Lee e Zélia Duncan.
Entre as lembranças, emergiu o seu principal legado: uma carta escrita há três décadas, um manifesto irônico e sagaz sobre envelhecer com dignidade. Nela, Brigitte disparava conselhos mordazes: aceite a velhice sem drama, cuide da educação e da higiene e evite excessos – de maquiagem, minissaias ou nostalgias. Gastar sem culpa também fazia parte do roteiro, pois, segundo ela, heranças às vezes premiam a ingratidão. “Leia, trabalhe e viva sua vida”, pontuava, com a leveza e o humor que sempre a definiram. Sua despedida foi uma celebração de tudo o que ela foi e inspirou: rir de si mesmo e seguir em frente, sem arrependimentos, é o luxo mais acessível e transformador.
Minutos depois da publicação da crônica, tive que explicar a alguns leitores que o texto não era autobiográfico nem baseado em fatos. Tudo pura ficção. Mas não adiantou. Alguns insistiram que realidade e imaginação não poderiam andar tão próximas. Um deles até me fez uma proposta inusitada: descrever o encontro, no plano espiritual, entre Brigitte e Benedito Alves dos Santos, mais conhecido como Biu Mossoró, ou simplesmente Mossoró.
Ícone da noite maceioense, Mossoró foi proprietário do cabaré Tabariz – mais tarde, transferido para a parte alta da capital, rebatizado de Churrascaria e Boate Areia Branca –, um dos principais redutos da "cadeia produtiva do prazer" entre os anos 1950 e 1980. Seu estabelecimento atraía autoridades, boêmios, coronéis de engenho e estrangeiros de todos os recantos, sob regras inflexíveis: nada de contrabando ou drogas ilícitas. E sempre foi questão de honra sua pontualidade, tanto como contribuinte de impostos quanto no pagamento de duplicatas e outros compromissos bancários.
Ele também se orgulhava de nunca ter ocorrido um assassinato em sua casa noturna. Nem subornava ninguém, apenas “lubrificava” relações: uma dose de uísque aqui, uma água de coco ali, e a vida seguia seu curso. Suas “colaboradoras” eram escolhidas a dedo, com seu olhar clínico para beleza e comportamento. Em troca, oferecia moradia, comida e até assistência médica. “Pai Véio”, como também era conhecido, tinha sua ética particular: nunca transgredia a lei. Segundo ele, apenas a contornava, “com jeito e todo respeito”.
Muitas histórias. Conta-se que, em certo carnaval, ele adquiriu uma mesa para o baile de terça-feira em um famoso clube alagoano, para premiar três de suas funcionárias mais esforçadas. Resolveu acompanhá-las, mas foi barrado pelo porteiro, que alegou ordens da diretoria por conta das “acompanhantes suspeitas”. Mossoró reagiu: “Peraí, meu filho, suspeitas são as que estão aí dentro. Essas aqui são putas legítimas, e das melhores...”.
Ele ousou até na publicidade, com um comercial exibido na extinta TV Rádio Clube de Pernambuco, cujo sinal alcançava Maceió. O anúncio, direto e inesperado, confundia inclusive turistas: "Churrascaria e Boate Areia Branca – a continuação do seu lar”. E nos fins de semana, vira e mexe era visto circulando devagar em um Dodge Dart conversível, acompanhado de jovens bem-vestidas e perfumadas, anunciando “novidades” à clientela. Morria de rir do cinismo de alguns de seus clientes que, limpando os óculos, fingiam não o ver passar.
Outro caso famoso envolveu sua ida ao dentista, que recomendou uma nova dentadura superior e outra inferior. Mossoró bateu no bolso e retrucou: “Tá vendo isso aqui, doutor? É dinheiro! Na minha boca só entra coisa superior...” E a fama do “Pai Véio” inspirou até o famoso Martinho da Vila, que, numa de suas turnês pelo Nordeste, criou um samba com um refrão incontestável:
"Só em Maceió,
Só em MaceióÉ que se pode vadiarCom as meninas do Mossoró…”
Quase aos 80 anos, em 1995, ele ainda reinava na varanda de sua residência no bairro de Pajuçara, refletindo sobre uma vida em que cultura talvez tenha faltado, mas sabedoria nunca. Partiu levando consigo segredos que ninguém mais ousaria contar.
Voltemos à proposta que recebi para descrever o encontro entre Brigitte e Mossoró, no plano espiritual. A ideia é sedutora, ę poderia começar com ele estendendo os braços para recebê-la: “Minha filha, ver você só pode ser imaginação, porque não me recordo de seu perfume...”
Mas não daria certo. São estrelas de constelações distintas. Ela, leve como uma pluma que desafia o tempo. Ele, destemido como um timoneiro que não se dobra aos caprichos do vento. São fachos de luz que nunca se cruzam na eternidade da noite, embora iluminem o mesmo horizonte: a beleza e as contradições de sermos humanos, imperfeitos e, ainda assim, inesquecíveis.
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