Economia
Hotel no Rio só contrata pacientes do Caps: 'Meu transtorno não me define', diz bartender
Uma fachada discreta na rua Bambina, em Botafogo, na zona sul do Rio, abriga a Casa Tuxi, um sobrado de 14 quartos, com banheiros privados e uma piscina. Lotada aos fins de semana e feriados, os hóspedes, que podem desembolsar até R$ 350 na diária, são avisados na recepção que todos os funcionários são pacientes psiquiátricos.
Há sete anos, depois de passar por internações e tentar suicídio, a fotógrafa e atriz Fernanda Tuxi, 40, decidiu que precisava rever suas relações sociais e de trabalho. Para isso, abriu o hotel e decidiu contratar seus colegas do Caps Franco Basaglia.
"Fui criada neste quarteirão e as pessoas sabiam da minha condição mental. Era a oportunidade de mostrar que sou capaz, independente da minha patologia", diz. Possivelmente herdados da avó, que foi internada várias vezes até cometer o suicídio, Fernanda tem os diagnósticos de bipolaridade e borderline.
Sem vergonha de ser quem é Fernanda é filha de uma traição do pai. A mãe, com 15 anos, se apaixonou pelo português que via na porta da escola em que ambos trabalhavam. Ela como ajudante de inspetor de alunos e ele, dono da frota de ônibus.
O casal viveu um relacionamento de 17 anos, que foi interrompido quando a mulher se cansou de ser preterida. O quadro psiquiátrico de Fernanda começou pouco depois de o pai morrer, quando ela tinha 16 anos. No dia do enterro, teve o que ela chama de surto e foi internada em um hospital psiquiátrico pela primeira vez. Nessa época, ao sair da internação, decidiu não voltar a morar com a mãe, pois sofria violência sexual do padrasto e, sem casa, viveu nas ruas.
Sua condição mental a prejudicou por causa do preconceito. Até cursar fotografia e atuação, aos 20, foi recusada em diversas seleções de emprego ao revelar seus diagnósticos. Em uma delas, para uma vaga de gerente em uma loja, foi recusada assim que abriu o jogo. "Não tenho vergonha de quem eu sou", diz.
Fernanda chegou a ser internada no Instituto Philippe Pinel, em Botafogo, e em um manicômio judicial, após tentativa de suicídio na ponte Rio-Niterói. Foi somente em 2015, aos 33, já em acompanhamento e estável emocionalmente, abriu a Casa Tuxi e percebeu que, além de viver do seu próprio negócio, queria acolher quem, como ela, é expulso e discriminado no mercado de trabalho por sua patologia mental.
Fernanda Tuxi - Imagem Fabiana Batista
Decoração artesanal, afeto e sem preconceitos
Na recepção decorada com objetos encontrados no lixo e reformados ou comprados em sites de móveis usados, a chefe é interrompida por risadas ao fazer piada ou comentários que conectam sua história a de seus funcionários. Sete pessoas trabalham com ela e a rotina de 24h do hotel é dividida por turnos. Uma das tarefas é recepcionar quem chega. Com sorriso no rosto, Carolina de Figueiredo, 26, recebeu a reportagem como se recepcionasse mais um hóspede.
A jovem, que tem borderline, participou de uma seleção que explicitava a busca por alguém com o seu perfil. "Estranhei, porque normalmente precisamos esconder nosso quadro". Na entrevista, lembra ela, "a Fernanda não estava muito bem e senti um pouco a vibe daqui. Eu a acolhi antes de conversarmos e fui contratada".
Para ela, a rotina de trabalho na Casa Tuxi é, positivamente, diferente de outros lugares.
"Nos entendemos quando estamos mal e posso falar dos meus surtos". Durante as folgas, quem cobre a recepcionista é Bruno da Silveira, 34. A Casa Tuxi foi o primeiro emprego em que o rapaz alto de fala lenta e pausada sentiu-se não apenas acolhido, mas também seguro nas funções que exerce. Desde sua chegada, há menos de três anos, ele atribui o bom desempenho às condições saudáveis atuais da Casa: "Aqui posso ser quem sou sem sofrer preconceito".
"Já contratei o Caps quase inteiro"
Além dos funcionários fixos, o hotel conta com dois freelancers. Branco Dutra, 45, chegou na casa há cinco meses e, assim como os outros, é paciente do Caps Franco Basaglia. Antes, foi internado mais de cinco vezes e nunca esteve em um emprego formal. Sofreu violências e abusos da família e, desde 2003, trata da esquizofrenia. "Atualmente, meu quadro está zerado", elucida.
"Já contratei o Caps Franco Basaglia quase inteiro", ri Fernanda. De acordo com ela, os que deram certo, como a bartender Maria da Conceição, 42, permanecem há anos no hotel. Bipolar e borderline, a funcionária foi contratada em 2019. Sua realidade não é diferente da trajetória profissional da patroa e amiga e passou por recusas em seleções com a justificativa de falta de suporte das empresas. "Aqui meu transtorno não me define", diz Maria.
Para ter certeza de que a pessoa é de confiança, a dona do hotel preza pela convivência. "O Bruno, por exemplo, pode ser efetivado em algum momento", diz. Apesar de entender que um trabalhador com patologia psiquiátrica pode ter um desempenho igual ou melhor do que quem não tem, Fernanda reconhece que a necessidade de acolhimento é constante: "Nós sofremos basicamente da mesma dor e nos acolhemos para seguir em frente."
Lei de cotas não inclui transtornos mentais
A produtividade de um funcionário está ligada a diferentes fatores. Condições funcionais, de trabalho e socioeconômico, motivação, compatibilidade com a função a ser desempenhada são alguns deles. De acordo com especialistas, não há mudanças no desempenho de um trabalhador quando diagnosticado com transtornos mentais.
"A pessoa não é definida por sua patologia e cada uma vai desenvolvê-lo de forma diferente, porque a trajetória de vida é diferente. Já conheci diretores de empresas e CEOs com transtorno bipolar; mas também quem está internado e não consegue levantar da cama", explica a psiquiatra Letícia Maria Akel Mameri, especialista em medicina do trabalho e coordenadora da Comissão de Psiquiatria do Trabalho da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria).
De acordo com Mameri, ao contrário do que supõe a sociedade, quem recebe um diagnóstico psiquiátrico não quer se afastar do trabalho. Ana Paula Carvalho, co-editora do livro "Psiquiatria do Estilo de Vida" e com certificação em medicina do estilo de vida pelo International Board of Lifestyle Medicine, relata um caso: "Já ouvi de pacientes que preferiam desenvolver uma úlcera ou um câncer, porque um transtorno mental não é concreto aos olhos do mercado".
Três dos transtornos encontrados na Casa Tuxi são bipolaridade, borderline e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Ao bipolar, a medicação é fundamental para um quadro estabilizado. O TDAH pode ou não incluir a medicação no tratamento, mas envolve terapia e adequação comportamental para o desenvolvimento do trabalho. Já o borderline é uma patologia relacionada à formação da personalidade e o remédio será indicado em casos que envolvam quadro depressivo ou psicótico de desestabilização.
Para Mameri, sem qualquer política pública voltada a esse paciente no ambiente de trabalho, além de sofrer preconceito diante sua situação, ele estará desamparado pelo Estado. Há a Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216/01, que garante melhores condições e inserção de pessoas com transtorno mental na sociedade e em espaços da saúde pública. Mas ela não cita nada sobre o tema do trabalho.
Em 2019, foi criado o projeto de lei 49.18/19, que visava incluir a garantia de acesso a políticas de reserva de vagas de trabalho. Entretanto, ela só foi aprovada, nas comissões responsáveis pelo debate, em 2021, mas não incluiu a obrigatoriedade das empresas de garantir essas vagas. Essa alteração apenas indica a importância de se destinar vagas a esse público, mas não há uma obrigação.
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