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Carro forte, medo e sigilo: como é aplicado o remédio mais caro do mundo
Receio de profisisonais de saúde de hopital é compreensível porque remédio custa R$ 6,5 milhões
"E se eu deixar cair? E se eu perder uma gota?" O receio de profissionais da saúde de um hospital em Curitiba, no Paraná, é compreensível: o que aconteceria a eles se desperdiçassem o conteúdo do Zolgensma, um remédio que custa R$ 6,5 milhões?
A droga, que chegou a ser transportada em carro forte, é armazenada em local sigiloso até que finalmente possa ser aplicada em crianças com AME (Atrofia Muscular Espinhal), doença genética rara que paralisa os músculos de recém-nascidos, levando a maioria deles à morte.
O esquema de segurança para a aplicação do "remédio mais caro do mundo" é só um dos capítulos sobre o Zolgensma, um remédio tão caro que pode inviabilizar o orçamento de cidades inteiras, como mostrou ontem o UOL em uma reportagem sobre o impacto da incorporação desse e de outros medicamentos de alto custo ao SUS (Sistema Único de Saúde).
O esquema de segurança, do transporte à aplicação do remédio, é um ritual no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, referência nacional em atendimento pediátrico e o segundo do país a ministrar o Zolgensma em um paciente, em setembro de 2020. A responsável por aquela aplicação foi a neuropediatra Adriana Banzato, que já havia acompanhado o trata.
Era manhã de maio quando Banzato aplicou o Zolgensma em um paciente internado no Hospital Erastinho, também na capital paranaense. De tarde, já de volta ao Pequeno Príncipe, ela recebeu o UOL para uma entrevista.
"Quanto vale uma vida?", replicou, ao ser questionada sobre o custo-benefício do medicamento. "Pensando só no dinheiro, quanto esse paciente vai custar à sociedade? Uma criança [com AME] deverá ter tratamento em tempo integral por toda vida. O custo disso para sociedade e para família é muito maior que o do remédio."
Banzato é claramente favorável ao custeio do tratamento com Zolgensma pelo poder público e por operadoras de planos de saúde a quem necessitar. Ela disse que o remédio traz melhorias importantes à qualidade de vida de crianças com AME. E garantiu que todos os pacientes tratados melhoraram depois de receberem a medicação.
Ela, aliás, foi convidada pelo Novartis, laboratório que desenvolveu o Zolgensma, para expor sua experiência com o uso do medicamento no evento de lançamento no mercado brasileiro; uma espécie de conferência custeada pela empresa que aconteceu em Brasília no final de maio.
Lá, segundo Banzato, profissionais da medicina discutiram detalhes sobre pacientes tratados com Zolgensma e a correta aplicação do medicamento —relativamente simples, apesar do custo de cada dose.
Banzato explicou que o Zolgensma é um líquido que vem em pequenos frascos, de 5,5 ml ou 8,3 ml cada, enviados diretamente da Novartis para o hospital no qual o paciente receberá o tratamento. Cada paciente recebe entre 40 ml a 80 ml do remédio, dependendo de tamanho e peso.
O laboratório calcula quantos frascos são necessários para compor essa quantidade de remédio e os envia acondicionados numa caixa. Os remédios chegam ao hospital sob esquema de segurança.
Segundo Banzato, carros fortes já foram utilizados para o transporte do Zolgensma, mas acabaram sendo abandonados por chamar muita atenção. Também por segurança, o Pequeno Príncipe não informa o local onde o medicamento é armazenado até que ele seja aplicado no paciente.
Da chegada do Zolgensma à aplicação, leva um tempo. O remédio é transportado e chega congelado a 60º C negativos. Leva 24 horas para entrar em estado líquido. Aí, seus frascos podem ser abertos e seu conteúdo pode encher as seringas que levarão o remédio da farmácia do hospital até o leito em que o paciente receberá o remédio.
"Nas conversas, o pessoal da farmácia relata uma apreensão: 'Ah, e se eu deixar cair?", 'Ah, e se eu perder uma gota?", contou Banzato. "Mas eles estão acostumados com esse trabalho. Passam por um treinamento e têm certificação para lidar com isso."
O conteúdo das seringas com Zolgensma é inserido no corpo do paciente por um cateter na veia, similar ao usado na aplicação de soros e outros medicamentos convencionais. Para receber o medicamento contra o AME, contudo, é preciso estar internado em um leito hospitalar.
Banzato disse que há hospitais que só aplicam o Zolgensma em pacientes que foram internados um dia antes, e a alta só ocorre um dia depois do procedimento. Outros centros hospitalares exigem apenas uma hora de internação prévia e a liberação acontece no mesmo dia.
O tempo de internação, explicou ela, varia conforme o protocolo de cada hospital e a evolução de cada paciente. O custo para aplicação do Zolgensma —que não está incluído no valor do medicamento— muda com base nesses indicadores.
Segundo Banzato, o gasto extra dificilmente supera 1% do custo do remédio —o que pode chegar a mais de R$ 100 mil. Mesmo assim, isso dificilmente sai do bolso dos pacientes, já que decisões judiciais obrigando o Estado a fornecer o Zolgensma para quem tem AME determinam que o internamento e a aplicação também sejam custeados.
A médica ressaltou que não são todos os pacientes com AME que podem receber o Zolgensma. Por conta da forma como o remédio funciona, é preciso verificar, em exames prévios, que a criança está apta a ser tratada com a droga.
A novidade do Zolgensma é que ele é um tratamento do tipo genético. O remédio insere um pedaço de um gene em células do paciente com AME para que produzam uma proteína essencial para a sobrevivência de neurônios. Como crianças com AME não têm o gene produtor dessa proteína, os neurônios começam a morrer. O paciente vai perdendo movimentos. Em seguida, vem a atrofia.
Para inserir o gene produtor da proteína no organismo das crianças doentes, o Zolgensma utiliza um vírus, chamado AAV9, presente no ar e inofensivo a humanos. Em laboratório, o "conteúdo" do vírus é retirado de sua "casca".
O gene produtor da proteína que falta no organismo de quem tem AME é inserido nesse invólucro. Quando esse vírus modificado entra no corpo humano, ele procura células para "infectar". Ao encontrá-las, ele se fixa a elas, bem perto dos genes originais do paciente doente. O organismo produz, então, anticorpos para combater o vírus e destruir a sua "casca", liberando o conteúdo.
Esse gene se posiciona de tal forma ao lado do DNA que passa a funcionar como se fosse do próprio organismo para sempre, e a proteína começa a ser produzida. Ocorre que, em alguns casos, essa abordagem não funciona. Como o AAV9 circula livremente pelo ar, é natural que pessoas desenvolvam anticorpos contra ele.
Isso pode fazer com que o corpo reaja imediatamente ao vírus, que é combatido e morto antes mesmo de liberar o gene na célula.
Por isso, Banzato explicou que somente pacientes cujos exames atestem a inexistência de anticorpos contra AVV9 no seu organismo recebem a prescrição do Zolgensma. Crianças com até dois anos geralmente não têm os anticorpos ainda e, portanto, a idade é tida como limite para o tratamento com o medicamento.
Contudo, Banzato disse ao UOL que já tratou paciente com 7 anos. E os resultados foram positivos. "Tem paciente que sente as primeiras mudanças com dois ou três dias após a aplicação", afirmou. "Com 30 dias, já é possível verificar um ganho de força em movimentos."
A neuropediatra afirmou que o Zolgensma evita que neurônios morram por falta da proteína, mas não tem efeito sobre as células que já morreram. Por isso, quanto mais cedo o diagnóstico da AME e o tratamento, melhor. Menos sequelas da doença.
Sobre o tratamento, ela disse não conhecer casos de efeitos colaterais permanentes. Há pacientes com inflamação no fígado dias após a aplicação do medicamento, mas isso é solucionado com outros remédios. A AME, por sua vez, é controlada para o resto da vida. "Tomou o Zolgensma uma vez, passa a produzir a proteína para sempre", concluiu.
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