Crônicas

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O vaga-lume de Massarandupió

Por Hayton Rocha 19/05/2022 11h11 - Atualizado em 19/05/2022 19h07
O vaga-lume de Massarandupió
Urtigão - Foto: Ana Isa

Há dois anos compartilhei aqui uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado”, com uma criatura sábia e mordaz que conheci em 1990. Foi o modo que encontrei de reconhecer uma amizade que já passa dos 30 anos.

Vira e mexe Urtigão some feito vaga-lume quando amanhece. Desapareceu de novo, aliás, em plena pandemia. Parecia ter entrado noutra dimensão, envolvido com algum fenômeno metafísico, como se nas águas da praia deserta de Massarandupió, próximo de onde vive no litoral norte baiano, houvesse uma versão cabocla do Triângulo das Bermudas.

Para quem não lembra, o chamado Triângulo do Diabo é uma região delimitada por linhas imaginárias no Oceano Atlântico. Sua área vai das Bermudas até as Bahamas, passando por Porto Rico, numa extensão de 3,9 milhões de quilômetros quadrados reconhecida por fenômenos “sobrenaturais” envolvendo o sumiço de navios e aviões.

Nem passou por minha cabeça, felizmente, a hipótese de ele ter sido mais uma vítima da peste que sumiu com tanta gente querida nos últimos dois anos. No meio do mato, dificilmente seria contaminado pelo vírus, se bem que viajava vez por outra à capital para matar a saudade de Ana Isa, sua musa inspiradora.

Cogitei, não nego, a possibilidade de uma picada de abelha africana, escorpião ou jararaca tê-lo obrigado a procurar um hospital, onde o mal do século se disseminava mais rápido que cuspida de músico.

Semana passada ele reapareceu. Recebi mensagem contando que, após meses cuidando de evitar um ataque cardíaco e quase à beira do suicídio, livrou-se de uma operadora de planos de internet banda larga via satélite. “...Só funcionava em dias ensolarados, sem nuvens, com estabilidade de energia elétrica mil centesimal, atestado negativo de brucelose, cirrose, escoliose, tuberculose, verminose etc...”

Disse que só conseguia ler alguma coisa quando passava pelo único supermercado da cidade mais próxima da roça. Mas Ana Isa não lhe dava sossego, apressada em concluir as compras.

Pensou até em “criar pombos-correios para socorrê-lo junto aos amigos mais queridos”. Teve medo, imagino, da gripe aviária ou ácaros, carrapatos, pulgas e outros ectoparasitas que se hospedam nas asas dos carteiros da paz.

“Em dias de chuva, a TV é só sombras e dúvidas; o celular emite sons de uma lata d'água, transformando meus interlocutores em fanhos ou gagos... Tive que me roer com a absoluta falta de comunicação bem na hora de plantar e cuidar da roça, quando nem posso sair daqui, pois se as chuvas não me virem, podem não voltar mais...”.

Bateu de frente, então, com a provedora e contratou outra, mas frustrou-se de novo. “Descobri que é muito ‘viva’ e, em dois dias, alegou que consumi 5,7 Gbytes. Impossível. Durmo cinco horas por noite, no mínimo. Fugi dessa também e agora estou testando uma terceira, igualmente instável, claro, muita intermitência, mas não promete muito e é mais barata...”

E arrematou: “Hoje não vou fazer nada. Vou só dar banho nos meus amigos caninos e ler tudo que recebi dos outros e ficou pra trás... Um abração”.

De bate-pronto, respondi sem pestanejar: “Que rufem os tambores e soem os clarins, que esfrie o sol e reapareça a lua para celebrar esta manhã, eis que de volta o admirável homem da verve. Pelo visto, não faz ideia do quanto dele preciso no meu dia a dia. Dois abrações!”

A tréplica que acabo de receber me diz que os sinais vitais de Urtigão estão aparentemente preservados:

“Estamos morando na roça. Ana despediu-se do emprego antes que endoidasse e ficasse igual a mim: um caso perdido! Fato é que passamos a ter outra relação com a vida, o vento, a chuva, o sol, as estrelas, os pássaros, os insetos e as plantas. O caminhar da idade vai fragilizando nossas emoções e aqui na roça esse efeito fica maior. Parece que vivemos como a Bíblia define a forma do pecado: ‘por pensamentos, palavras e obras’.

“...Outro dia estava olhando o milho e o feijão de corda que plantamos, lado a lado. Os pássaros esperavam o milho brotar, arrancavam as plântulas e comiam o resto das sementes... Chegavam entre as seis e sete da manhã, provavelmente porque o pessoal começa a trabalhar às sete. Já o feijão de corda foi degustado pelas paquinhas (um inseto da família dos grilos e gafanhotos) que trabalham de noite, também longe dos olhos do pessoal...”

“...Não usamos defensivos porque penso comer produtos saudáveis, mas tenho a sensação de que, se formos ‘comer da terra que cultivamos’, vou ter que aprender com os povos orientais a saborear insetos...”

“...Você está piorando, meu bom amigo. A escrita está lhe tornando frágil. Tá virando poeta... Dois abrações também, fortes feito gemada com ovo de pata e cerveja preta”.

Se soubesse fazer versos, meu caro vaga-lume de Massarandupió, nem recorreria ao “Soneto do Amigo”, de autoria do Poetinha, para tentar traduzi-lo:

“… Um bicho igual a mim, simples e humano

Sabendo se mover e comover

E a disfarçar com o meu próprio engano

O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer

E o espelho da minha alma multiplica…”