Vó é vó, tchê!
Ontem, bem cedinho, o sinal sonoro do celular de minha vizinha alertou-a da chegada de uma mensagem: “Oi… Ligou? É urgente?”. Estávamos no elevador, saindo para a caminhada no calçadão da orla.
Divorciada, 58 anos, Mafalda Lavado Tejón é natural de Mendoza, cidade da região vinícola argentina de Cuyo, famosa por suas bodegas, pelo Malbec e outros vinhos tintos de boa cepa, o que nos aproximou e me faz visitá-la com razoável assiduidade – acompanhado de minha mulher, óbvio!
Com um rabo de olho, pude perceber o que se passava. Ela quis disfarçar, mas acabou revelando que, tocada pela saudade dos netos, que não aparecem há mais de mês, anteontem tentou conversar com eles às sete da noite, por videochamada através do telefone de Joaquín, seu único filho. Ninguém atendeu.
Pouco importa se netos são monossilábicos em contatos cada vez mais esporádicos, imersos em seus afazeres digitais. Mafalda é a mais completa expressão do amor absoluto, generoso, pleno, que não impõe condições ou limites nem espera nada em troca, exceto, se sobrarem, dois dedos de atenção, uma vez na vida e outra na morte (certamente prefere em vida as duas vezes!).
Sabe, claro, que filhos sempre culpam os pais não importa do quê, como se não estivessem predestinados a serem pais mais adiante. Tem sido assim desde que Caim quis terceirizar a culpa por destruir Abel acusando Eva de preferir o irmão dele, diante de um Adão omisso que, após ser expulso do Paraíso, não conseguia sustentar a prole trabalhando em home office.
"Quem não quer sofrer, nasce cega, surda e muda", vive repetindo Mafalda. Reconhece, entretanto, que tudo se torna menor ao lembrar de sua falecida tia Antônia, uma das Madres de la Plaza de Mayo (organização argentina de ativistas dos direitos humanos há mais de quatro décadas), que teve dois de seus rebentos, líderes trabalhistas, sequestrados e mortos pela ditadura militar durante o massacre contra os movimentos esquerdistas, entre 1976 e 1983.
Para Mafalda, nada mais é urgente. Pelo menos dentro da escala de valores de seu filho, que possui repertório próprio de conceitos para o que vem a ser importante, urgente ou inadiável, em relação à mulher que lhe despejou no mundo.
Ela hesitou um pouco em responder a mensagem. Não queria dar a entender que estava ansiosa, carente ou que se tratava de exagero de mãe extremada, essa miríade de adjetivos com que os mais jovens costumam rotular quem apenas purga por aqui, sem pressa, o saldo remanescente de pecados.
Compreendi perfeitamente porque ela quis esconder o que se passava. Afinal, é cruel admitir a gradativa evolução de nossa irrelevância na vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda nos são caras. E, a rigor, sou nada mais que um conhecido cuja única afinidade com ela, além de vinhos, parrillas e queijos, é a condição de vizinho de porta.
“Liguei sem querer!” – digitou em resposta. Logo ela, professora de artes cênicas até outro dia, que orientava seus alunos sobre as imperfeições dos relacionamentos humanos, a dizer que não se deve apertar, prender ou sufocar quem se ama, porque o que hoje é laço amanhã pode virar nó cego, essas coisas.
Pode ter recordado de alguns finais de semana quando o ranger da dobradiça da porta de sua casa anunciava que Joaquín estava de volta da inquietante noite com seus afetos e desafetos, e isso lhe fazia grata a todos os anjos e santos de plantão. Só assim seu coração relaxava e a cabeça fatigada se rendia ao travesseiro amigo.
Imaginava que ter sido mãe por uma vez contaria pontos a seu favor, dado que teria uma só nora. Se fosse a filha que não veio, ótimo! Se não, fazer o quê? Tinha agora consigo, com a ironia e a verve das sábias, que “nora nada mais é do que uma sogra jovem, se tiver sorte de chegar lá”.
Ao deixarmos o prédio, tomamos destinos opostos, cada qual com suas conjecturas. Cinquenta minutos depois nos reencontramos onde havíamos nos despedido. "Vou me desfazer de tudo que tenho e voltar para a Argentina. Cansei dessa vidinha sem graça que levo aqui", ela anunciou.
Pensei em lhe dizer que não adianta fazer as malas achando que o problema não fará parte da bagagem, mas resolvi não me meter: "Faça o que seu coração pedir, Mafalda...".
Não demorou muito, o sinal sonoro celular alertou-a da chegada de uma nova mensagem de Joaquín: “Ô mãe… A secretária ligou dizendo que não vem. Tá de cama, gripada. Como hoje é sábado e vamos visitar uns amigos, você fica com as crianças até às cinco?"
De novo, ela vacilou um pouco antes de responder. Mas sem demonstrar ansiedade, carência ou exagero de mãe extremada, foi breve e reta ao optar pelo que seu coração pedia: “Claro! Vó é vó, tchê!”.
E piscando um olho em minha direção, apelou: “Esquece o que te falei, vizinho…”.
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