Crônicas

* Este texto não reflete necessariamente a opinião do Em Tempo Notícias

Sem nó na garganta

Por Hayton Rocha 01/06/2022 09h09
Sem nó na garganta

Sem nó na garganta

Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios, na Inglaterra, buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set de filmagem o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado.

O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.

Lembrei-me disso na semana passada, ao abrir não uma arca perdida mas uma caixa guardada por minha mulher quando nos mudamos do apartamento em que morávamos na Asa Norte, em Brasília, a 10 minutos do trabalho, para a casa no Jardim Botânico onde agora nos acordam bem-te-vis, corujas, maritacas, quero-queros e sabiás.

Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo. Tive a sensação de que algumas se mexiam, cada uma com seu chiado próprio, ameaçando-me a qualquer momento um bote no pescoço. Refuguei no avanço exploratório para avaliar melhor o que fazer. Vi que nem aquelas que mais me custaram valem agora a cueca que me protege do frio que faz em Brasília neste atípico mês de maio.

Como um arqueólogo, fotografei o achado, lacrei de novo a caixa e fui refletir sobre que medidas a adotar após o inesperado reencontro. Ultimamente, aliás, só tenho visto gravatas em advogados, bancários, juízes, pastores religiosos, políticos e defuntos (nesse caso, óbvio, involuntariamente).

Vem de longe essa peça do vestuário masculino. Descobri que surgiu na França no final do século 17. Os gauleses adaptaram-na de um exército croata que andou por lá em 1668. Usava-se um cachecol para manter o pescoço arejado no verão e aquecido nos primeiros dias de inverno. Quando o frio apertava, era trocada por um modelo de lã. Foi em Paris, inclusive, que recebeu o nome de cravate, ou “croata”, em francês.

Acontece que gravata é feito gato: não gosta de água. Trata-se de uma peça por natureza imunda, repleta de microrganismos ressequidos, tanto de origem do usuário quanto de seus interlocutores, evidenciando, aliás, que a expressão “babar na gravata” não surgiu do nada. Tal como certas roupas delicadas, só é lavada à mão – nunca na máquina –, estendida na sombra e guardada com uma série de cuidados. Em tese, portanto, calcinhas, cuecas e meias são bem mais limpas e cheirosas.

Mandei a imagem de meu achado arqueológico para uma amiga, pedindo sua opinião sobre o que fazer. Adiantei que meu primeiro impulso foi jogá-lo numa fogueira. Mas isso não condiz com a secura que começa a castigar a vegetação do Cerrado nesta época do ano, nem pretendo formar pastagens para rebanho bovino ou plantar soja no meu jardim, agravando o caos ambiental decorrente de queimadas.


Adiantei também que, nos tempos em que havia casamentos (talvez ainda haja, não estou bem certo disso), em especial os mais humildes, era comum recortar a gravata do noivo em minúsculos retalhos, a serem "vendidos" para os convidados, como forma de angariar uma ajuda para o novo casal. Pensei em algo nessa linha, dando um final prático e rentável para meu “serpentário”. Precisaria apenas convencer minha mulher a abrir mão da exclusividade quanto ao maridão, mas fui prontamente demovido: “A vida reprova quem erra mais de uma vez a mesma questão" – ela resumiu. Nem cheguei a explorar melhor o pensamento, que achei profundo.

Mais tarde, a amiga com quem compartilhei a fotografia me veio com esta: "Dariam pra fazer uma colcha de fuxicos". Fuxico, no caso, é um tipo de artesanato feito com tecido, agulha, linha e paciência... Muita paciência. Além de ser uma das técnicas mais conhecidas pelos brasileiros, é método de relaxamento barato que resulta em almofadas, cobertores, colchas, costurando-se pequenas e coloridas trouxinhas de pano.

Fuxico também, como se sabe, é falar da vida alheia de forma maledicente. É bisbilhotice, cochicho, disse-me-disse, futrica, mexerico, zunzum, essas coisas de moleque de recados. E, não tenho dúvida, se minhas gravatas tivessem ouvidos, juro que teriam ficado moucas de tantas intrigas que escutaram em mais de 40 anos lidando com certas figuras ordinárias e venenosas.

Optei, então, por um funeral (apenas das gravatas, sem o pescoço, bem entendido!). Afinal, superar a perda de certas peças de estimação não é nada fácil, já que estão impregnadas de sentimentos, testemunhas silenciosas que foram de momentos importantes. Além de lidar com a dor, portanto, era necessário encontrar uma forma de curtir o luto, mesmo sem lágrimas, antes de enterrá-las.

No cair da noite, sozinhos no quintal, eu e elas (as gravatas), fizemos uma cerimônia íntima, reflexiva sobre o que experimentamos juntos. No final, antes da última pá de terra e sem qualquer espécie de nó na garganta, recitei com convicção uma quadrinha popular cuja autoria desconheço que aprendi nos tempos de menino: “Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...”

Não é de gravatas que devemos ter medo, mas de pensar nelas quando já não fazem sentido.