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Açoite

Ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória.

Por Hayton Rocha 08/06/2022 08h08
Açoite



O trem chegou às oito e meia da noite na estação de União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, num dia útil qualquer do final dos anos 60:

— Oxente, Açoite, o que cê tá fazendo aqui? — quis saber a dona da casa, surpresa com a inesperada visita.

— Acabei de chegar, dona Eudócia — respondeu, enxugando a testa na manga da camisa.

— Como é que cê veio?

— Tem dois dias que tô viajando.

— Quem deu a passagem?

— As irmãs do Cristo Rei.

— Tá com fome?

— Muita.

— Entre, sente.

— Tem sopa?

— Tem. Vou esquentar.


Açoite era mais um andarilho à custa da caridade alheia. Vivia entre cidades do Sertão paraibano, mas passava a maior parte do tempo deitado no terraço da prefeitura de Patos, balançando-se sob o ritmo do ranger da cabeça dos punhos da rede nos ganchos.

A molecada morria de medo de levar uma pedrada na cabeça, mas gostava, a razoável distância, de vê-lo a produzir com o vento um assobio ao girar uma pedrinha presa a um barbante, tirando finos cada vez mais próximos de sua própria boca.

Vinha daí o apelido. Açoite (chicote, chibata etc.) é uma trança de corda ou tira de couro presa a um cabo para fustigar animais e, em certos países, para castigar seres humanos por violação de normas instituídas por eles mesmos.

No auge da performance de Açoite, sempre aparecia alguém querendo quebrar o encanto:

— Tem juízo um homem desses?!

— Tem nada! — dizia o próprio Açoite, a piscar os olhos, em tique nervoso — Mas é melhor ser doido em Patos do que prefeito em Piancó.

E quando estava em Piancó ou Conceição, só “recalculava a rota” de seu GPS. Sobrava então para o prefeito de Patos.

Tinha outros problemas de saúde, claro, mas também foi diagnosticado como epiléptico pelo único médico da cidade de Patos. Na época, a epilepsia ainda era associada à loucura e até a possessões demoníacas. Com esse estigma, as crises convulsivas de Açoite — que não tinha meios para uso regular de remédios — assustavam a criançada no meio da rua.

Havia algumas mulheres que se aproveitavam desse temor parar ameaçar os filhos: “Fique quieto, danado, senão eu chamo Açoite para te pegar!”

Quando dona Eudócia soube disso, teve pena e assumiu com Açoite o compromisso de lhe fornecer o remédio todo mês, além de garantir um prato de comida no almoço e outro no jantar, como já vinha acontecendo. “Ele chegou a engordar um pouquinho”, ela me contou.

Um dia dona Eudócia foi embora com seus filhos, acompanhando o marido, que fora nomeado subgerente do Banco do Brasil em União dos Palmares (AL), a 430 km do Sertão paraibano.

Açoite sentiu. Mas poucas semanas depois procurou a agência do banco em Patos para saber o paradeiro do marido de sua protetora. Em seguida, foi ao Colégio Cristo Rei, onde convenceu algumas freiras a arranjarem o suficiente para pegar o trem para Recife e, de lá, para Maceió. Assim, ficaria fácil chegar ao destino pretendido, a 70 km da capital alagoana.





Ilustração: Umor

Naquela noite, depois da sopa e do banho com sabonete “de gente”, como dizia Açoite, pediu rede e lençol para dormir. Antes que caísse no sono, dona Eudócia quis saber:

— Gostou da sopa?

— Oh! Já tô pensando no pão com manteiga e café amanhã bem cedinho.

— Teve saudade da gente, foi?

— Foi.

— Por quê?

— A senhora cuida de mim. E os meninos não têm medo.


Uma semana depois, Açoite deve ter lembrado do balanço de rede no Sertão paraibano e ficou amuado pelos cantos da casa. Foi quando, com a ajuda de sua protetora, pegou de volta o trem, levando, além de um trocado, algumas caixas de Gardenal.

Como tantas outras pessoas que cruzam o nosso caminho, do jeito que apareceu, sumiu. Nunca mais se ouviu falar dele.



on estava em celebração. Ao menos dos 6 filhos de minha mãe ele de fato sabia e hoje ainda lembro e espero sua visita todo ano, 50 anos depois.