Crônicas

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O curioso caso de Quirino

Por Blog do Hayton 22/06/2022 15h03
O curioso caso de Quirino

Você já ouviu daquelas histórias que todo mundo diz que aconteceram com um amigo? A que conto aqui envolve Quirino — goleiro, dos bons, do time do meu bairro — e sua irmã de criação, Alzirinha, dois anos mais velha que ele.

Quirino teria não mais que 13 anos. Duas vezes por semana, por volta de quatro da tarde, ia ao banheiro, levando caderno, lápis e livros. Para Alzirinha, que vivia a espremer cravos e espinhas enquanto não estava lendo fotonovelas de Capricho, Grande Hotel ou Sétimo Céu, não era para estudar Matemática. Entre as folhas haveria algum recorte de uma revistinha sueca ou um “catecismo” de Zéfiro — pseudônimo de um comportado e insuspeito funcionário público federal —, desenhista de quadrinhos eróticos entre os anos 50 a 70.

Alzirinha cismou de uma vez por todas quando flagrou Quirino, no quarto, tentando reproduzir a lápis grafite a obra Êxtase de Santa Teresa (do escultor italiano Bernini), exposta na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma. A expressão do rosto, com lábios entreabertos, de fato pode levar alguns a verem uma tradução carnal ao êxtase pretensamente sagrado.

Andava tão encasquetada (ou com ciúmes, sei lá!) com a curiosa rotina do irmão que um dia bateu à porta e quis saber, como se já não soubesse: — Que diabo você tanto faz aí?

— Não é de sua conta!

— Não fale assim comigo!

— Então, cuide de sua vida.

— Vou contar a papai.

— Me deixa em paz!

Alzirinha só sossegou no dia em que conheceu o novo vizinho, um cabeludo das canelas finas que fumava igual a uma caipora, dono de um fuscão preto com as rodas largas e o cano de escape aberto. Tinha mais o que fazer.

Tempos depois, em seus devaneios etílicos no boteco, entre amigos, Quirino andou defendendo tese no mínimo incomum: achava que os seres humanos deveriam nascer velhinhos, decrépitos, e evoluírem na direção de uma infância plena de saúde e sabedoria.

Algo parecido seria visto bem mais adiante no filme O curioso caso de Benjamim Button, inspirado na obra de Fitzgerald e lançado em 2008. A obra narra a história de um homem que nasce com a aparência de um idoso e rejuvenesce à medida que vive experiências como o amor, a solidão, a perda e o medo.

Para Quirino, só se deveria trabalhar após os 40. Antes disso, todos deveriam receber mesada de um certo fundo de recursos financeiros — poupança formada pelas pessoas mais idosas —, o suficiente para viver o ápice da maturidade em plena ebulição hormonal.

Tinha dúvida, evidente, se os suicidas não acabariam provocando o colapso do fundo, deprimidos com a proximidade da jornada de trabalho pelo resto da vida. Caso acontecesse, haveria desequilíbrio entre nascimentos e mortes e a sobrevivência no paraíso estaria comprometida.

Fã de O Pasquim — sobretudo de Millôr Fernandes, Ivan Lessa e Paulo Francis —, Quirino sempre embarcava com facilidade numa boa utopia. Mas um dia o porre acabou. Formou-se em arquitetura e passou a trabalhar como todo mundo, sujeito a carga horária, ao estresse de ser infalível, à raiva de ter que repassar aos governos de plantão quase 30% daquilo que ganhava.

Encontrei a criatura, outro dia, mais de 40 anos depois, tomando café com tapioca de coco e queijo derretido no mercado. Apesar da escassez capilar e dos quilos e rugas a mais, não foi difícil nos reconhecermos.

Logo conversávamos sobre ilusões convertidas em esperanças, sobre garrafas de suor e pranto derramadas pelo caminho e sobre o receio de não conseguir tudo o que ainda sonhamos alcançar.

Falei de filhos e netos, de prazeres e desgostos, e de que, no derreter do queijo, me sinto bem, com as doenças sob adequada gestão. Sem os rachas de antigamente, disse-lhe que agora me distraio escrevendo crônicas sobre o que vi ou tenho diante de mim.

Quirino, que nunca foi de muita conversa, a não ser quando tangido pela emoção do terceiro gole — gostava de citar o personagem de Bogart, no filme Casablanca: “a humanidade está sempre duas doses abaixo do normal” —, falou de si ao recitar uma adaptação bem pessoal que escreveu de “O último poema”, de Bandeira:

Assim eu quis, mas nunca consegui, o meu único poema.
Que dissesse as coisas mais simples e menos intencionais.
Que fosse forte como um soluço sem lágrimas.
Que fosse belo como as flores sem cheiro.
Que tivesse a pureza da terra, do ar, da água e do fogo, no começo de tudo.
E a paixão dos que se matam por nada.


Perguntei de seus textos e desenhos autorais, mas ele me confessou que desistiu desde aquelas tardes solitárias em que, talvez com uma ponta da razão, Alzirinha andou desconfiando da extensão de sua pegada poética, de sua veia artística de grosso calibre.

E assegura que o mundo, esse ingrato, perdeu um pintor ou poeta — ave rara, feito rolinha-fogo-apagou, nos dias de hoje — ainda no ninho. Nem chegou a voar. Desistiu ao levar o primeiro peteleco e se estatelar com as asas abertas e o peito no chão.