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Mãos, pra que te querem?

24/08/2022 13h01 - Atualizado em 25/08/2022 08h08
Mãos, pra que te querem?

Vídeos que circularam nas redes sociais em campanhas eleitorais passadas são como zumbis: levantam-se de suas catacumbas e, sem bater a poeira, voltam a atormentar a vida de seus protagonistas. É o caso de um produzido há poucos anos, que outro dia reapareceu nas telinhas.

Para atrair a atenção de eleitores e gerar a chamada mídia espontânea – quando uma pessoa, mercadoria ou marca é citada numa reportagem sem, supostamente, ter investido nisso um centavo –, políticos de todos os credos são capazes de beber licor de jenipapo com tira-gosto de sarapatel requentado para deixar transparecer que agem com naturalidade.

Há quatro anos, na luta para se reeleger prefeito de Salvador, o que deveria ser ato meramente político para ACM Neto virou piada, gozação, pilhéria ou qualquer termo jocoso que se queira utilizar, provocando rumores e risos nos botecos, ladeiras e terreiros da capital baiana.

No canteiro de obras do aeroporto internacional Luis Eduardo Magalhães, o pequeno burgomestre aparece risonho com uma enxada nas mãos brancas e delicadas, afeitas a cremes hidratantes, de unhas e cutículas bem aparadas, como se desse o peteleco inicial dos trabalhos.

Sapatos engraxados e dentro de um impecável terno azul-marinho, ACM Neto enrola-se todo ao tentar manter a brita e o cimento sobre a superfície da ferramenta. Parece confundi-la com uma vassoura, algo complicado para quem nunca varreu um quintal ou uma calçada. Enfim, mostra que, se tivesse chance, capinaria sentado. (Reveja a cena)
Certa vez, em Camacã, no sul da Bahia, em palanque onde autoridades civis, militares e eclesiásticas derretiam encharcadas na abertura da Festa do Cacau, vi bem de perto quando o seu avô, o velho morubixaba ACM, quase cometeu uma gafe do mesmo naipe.

A festa acontece todo dia 30 de agosto, quando se comemora a emancipação política local. Consta do programa uma disputa conhecida como “Quebra do Cacau”, onde trabalhadores rurais representantes de fazendas precisam quebrar a maior quantidade de frutos no menor tempo possível. Os vencedores, além de prêmios em dinheiro, ganham o status de os melhores da região. Os patrões, óbvio, estimulam a "brincadeira".
A vaidade é mel de tolos, mas até os sabidos se lambuzam. A disputa tem a ver com a colheita nas roças. Começa com a arranca do cacau com o auxílio do podão, espécie de lâmina que é colocada na ponta de uma vara enorme. O fruto possui casca resistente, que não se rompe ao cair no solo, sendo então recolhido e amontoado no que chamam de rumas.

Em seguida, iniciam a quebra. Uns cortam o cacau com facão, enquanto outros retiram as amêndoas, jogando-as em caixas de madeira que, quando cheias, seguem no lombo de burros para a sede da propriedade, onde são armazenadas. Virar Diamante Negro, Ferrero Rocher ou Sonho de Valsa é só questão de tempo, açúcar, leite e fogo.

Mas voltemos ao ponto, em agosto de 1999. Alguém cochicha no ouvido de ACM, então todo-poderoso presidente do Congresso Nacional, oferecendo-lhe um facão e uma baga de cacau. Sugere que parta o primeiro fruto ali produzido após a descoberta da solução para uma praga (a vassoura-de-bruxa) que quase dizimou as lavouras da região.

A casca do fruto, evidente, havia sido parcialmente cortada – é bom nessas horas nunca subestimar o potencial de vexames. Nem assim ACM se encorajou a pegar no cabo do facão. Provavelmente temia se automutilar decepando os dedos, mais finos e menos ásperos do que os de Irmã Dulce, que por toda a vida se devotou de alma e corpo a dar as mãos aos menos favorecidos da Bahia.

Com o riso amarelado feito a casca do cacau maduro, o mandachuva balançou o dedinho indicador, desistindo. Tinha mãos de quem nunca pegou nem em barbante, que dirá numa corda. O máximo de peso que enfrentaram foram pastas e dossiês. Mãos, no entanto, capazes de esganar, estrangular ou, no mínimo, beliscar bochechas, puxar orelhas de correligionários afoitos que tentassem desafiar a sua supremacia.

Tal como o neto, porém, nunca foi de pegar no cabo da enxada ou do facão. Dizem – não posso garantir porque nunca vi, não vou mentir! – que preferia esfregar as mãos alvas e mimosas quando se referia à “sua” Bahia, mais dele do que de todos os santos, lembrando aos seus discípulos: “aqui quem não é meu amigo, é meu inimigo!”.