Crônicas

* Este texto não reflete necessariamente a opinião do Em Tempo Notícias

Dever de casa

Por Blog do Hayton 19/10/2022 14h02
Dever de casa

Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.

É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.

Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas:

– Andar de bicicleta. Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro dia, um amigo ponderou que, com o tempo, a gente aprende a aliviar a área sustentando nas pernas expressiva parte do peso. Mas sob a pressão de meus irredutíveis 98 kg, retruquei numa boa: selim no cóccix do outro é refresco!

– Atrasar-me para um compromisso. Há quem diga que ser pontual e gostar de pia limpa e cheirosa é coisa de velho. Concordo e acrescento lençol e travesseiro. Porém a sala de espera do consultório médico (ou qualquer outra do gênero) provoca mal-estar quinze a vinte minutos depois do horário combinado no pressuposto de que as partes envolvidas merecem mútua consideração.

– Caminhar na areia fofa da praia, na maré cheia, com as panturrilhas doendo. Outro dia, vi o futevôlei na orla e, de repente, senti que a bola vinha pelo alto em minha direção. Pensei em amortecê-la no peito e, com um chute certeiro de peito de pé, devolvê-la aos peladeiros, deixando-os de queixo caído. Mas a bola, ingrata, talvez chateada com o meu sumiço, fugiu sem aceitar o afago de um antigo amor. Humilhado, tive a melhor demonstração das diferenças entre teoria e prática, entre o que sou e o que fui.

– Conviver no trabalho com quem se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia. Que só enxerga os outros de cima para baixo, quase sempre com um debochado risinho sobre qualquer comentário que conflite com seu ponto de vista.

– Faltar água no chuveiro (ou energia, nos dias mais frios em que o banho morno é imperativo) assim que a gente coloca shampoo no que resta de cabelos, isso depois de haver largado no roupeiro camisa, bermuda e cueca.

– Ler um romance (ou uma crônica, para os incapazes de ir além disso) realmente marcante, daqueles que nos remetem à invejosa consulta diante do espelho: “Por que não pensei nisso antes?”

– Lidar com gente que se diz franca, leal, sincera demais, como se isso fosse salvo-conduto para dizer tudo o que vem à cabeça, despreocupada se machuca ou não aos outros. Dá vontade de falar: “Nada disso! Isso é ser rude, desagradável, mal-educada”. Não digo apenas para não ser incoerente.

– Participar de reuniões longas, com gente que fala pelos joelhos e cotovelos, dá voltas e nunca chega a lugar algum. Coisas simples são ditas de forma tão complicada que se tornam enfadonhas e insultam a síntese e a objetividade que devem nortear a relação entre seres pensantes.

– Passear a contragosto pelos shoppings lotados, na hora do cochilo após o almoço, entrando aqui e ali, observando vitrines, apenas para não contrariar a cara-metade. Os lojistas desses templos de consumo não fazem ideia de quanto lucrariam se criassem espaço de relaxamento com redes de algodão, penumbra, música instrumental, água gelada e cafezinho, destinado à restauração de maridos em trânsito.

– Relacionar-se com uma pessoa demasiadamente medrosa, avessa a qualquer novidade sob o argumento de que valoriza aquilo que “sempre deu certo”. Que não quer saber de nada que traga algum desconforto em sua miserável rotina, mas se envenena de inveja quando alguém a seu lado se dá bem pela coragem de pular o córrego.

– Rever, sem poder atacar a faca e garfo, iguarias que remontam a um tempo em que quase tudo era permitido, como: buchada de bode, pastel com caldo de cana, churrasquinho de rua, quebra-queixo, sarapatel, torresmo etc.

– Sentir aquela cólica crescente e trepidante numa manhã de ressaca, no trânsito caótico, sem chance de um pit stop nos próximos dez minutos. Ainda que se evite lembrar das propriedades emolientes do azeite de dendê da moqueca da noite anterior.

Soube, há pouco, que a escola resolveu suspender a atividade objeto da entrevista de Camilinha. Boa parte de seus colegas não fez o dever de casa. Natural. Nessa idade, todo mundo têm “coisas” mais agradáveis a fazer no fim de semana.