O olhar de Marieta
Um olhar nunca é só um olhar. Possui mistérios e sutilezas que apenas outro olhar (até de um inocente curioso como eu; mais curioso do que inocente, alguém diria!) pode ver. Existem flagrantes que dispensam legendas. Falam por si sós.
Este olhar, não tenho dúvida, traduz na justa medida a admiração, o amor, o carinho, a cumplicidade e o cuidado na escolha de alguém com quem partilhar planos, prantos e pratos.
O dramaturgo Aderbal Freire-Filho, que fez por merecê-lo de Marieta Severo, deixou este plano na última quarta-feira, aos 82 anos.
Ela desabafou sobre como reagiu após vê-lo sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico, em 2020. “Foi mais do que sofrido, foi inacreditável”, disse em entrevista a um site de notícias.
“É uma consciência da precariedade da vida que tomou conta da minha. Por mais que a gente saiba dela na teoria, quando ela se apresenta, muda tudo. Estávamos em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com as minhas netas, por causa da pandemia. Ele ia para o Rio resolver uma questão do imposto de renda e voltaria no dia seguinte. Nos falamos três vezes depois que ele saiu”, arrematou.
O interessante da relação entre eles é que não dividiam o mesmo teto. Marieta explicava que, como se casou pela primeira vez muito nova (com Carlos Vergara, em 1964), nunca teve um espaço para chamar de seu.
Ela, portanto, nunca precisou sacudi-lo às seis da manhã, sorrir um sorriso pontual nem dizer pra ele se cuidar. Nem lhe fazer com açúcar e com afeto o seu doce predileto. Viviam muito bem, cada qual sob seu teto.
Ela, que começou a se relacionar com ele depois dos 50 anos, disse certa vez que a história desse amor era bastante madura, porque cada um já vivera experiências antes de se encontrarem (após dois anos com Carlos Vergara, foi casada com Chico Buarque durante 33 anos).
Na época, não vou negar, fiquei triste com o fim do casamento de Marieta e Chico, depois de amargarem um exílio juntos (quando estiveram na alça de mira da ditadura militar) e de trazerem ao mundo três lindas filhas. Certos casais a gente sempre acha que são “para sempre”.
Queridos do público, bem-sucedidos, para muitos eles personificavam o “para sempre”. A notícia da separação intrigou os fãs, que teimam em não aceitar que a rotina cotidiana de astros, assim na Terra como no Céu, também se desgasta.
Ainda bem que da união com Chico, além de Silvia, Helena e Luiza, brotaram lindas frutas como a amizade, o respeito e a admiração mútua. Sem contar as parcerias no teatro.
Em 2004, cinco anos após o divórcio, Marieta fez revelações interessantes numa entrevista. “Vejo casais que se separam e não se falam mais e fico chocada… O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil”.
E disse mais sobre a vida a dois: “Não tinha glamour nenhum. Era dor de dente, briga com as crianças que deixaram tudo fora do lugar, com quem não fez a lição... Eu saía de casa para ir trabalhar, deixava as crianças com a babá e tinha culpa, sim. Como qualquer outra mulher. Ah, o glamour! A gente na banheira, com rosas em volta... Que banheira?! Não dava tempo nem de tomar banho direito!”.
Naquele mesmo ano, Aderbal chegou até Marieta como quem chega do nada, não lhe trouxe nada, também nada perguntou. Vai ver pegou em sua mão e antes que ela dissesse “não”, instalou-se feito um posseiro dentro de seu coração. Bem feito pros dois!
Dezesseis anos mais tarde, ele sofreria o acidente. Aderbal ficou mais de dois meses internado. Ao deixar o hospital, os dois passaram a compartilhar a mesma casa pela primeira vez. Mas ele nunca mais se recuperou das sequelas do derrame.
O velório aconteceu no teatro Poeiras, repleto de amigos e tomado pela emoção, principalmente quando as netas de Marieta cantaram em homenagem a Aderbal. O corpo foi cremado quinta-feira passada, em cerimônia íntima, no Memorial do Carmo, no Caju, Rio de Janeiro, com a presença apenas da viúva e de algumas pessoas que trabalham no teatro.
Marieta contou que, assim que a equipe médica lhe disse que o quadro era irreversível, conversou com a amiga Andrea Beltrão (uma das responsáveis pela criação do teatro Poeiras, ao lado do casal) sobre a possibilidade de enterrar no teatro as cinzas do marido.
Uma placa será colocada com o nome de Aderbal no muro do canteiro, espaço em que foi enterrada a urna com suas cinzas. E uma árvore será plantada no local, marcando assim a presença, para sempre, daquele que um dia fez por merecer o olhar de Marieta.
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