Carnaval: janela da alma
Em sentido estrito, estamos entrando no período de carnaval; porém, em sentido amplo já estamos imersos no ritmo da folia há vários dias. Neste período festivo os casais costumam falar em vale-night, termo que já foi incorporado até no dicionário: “Termo utilizado, em geral, por micareteiros no qual significa a permissão de direitos iguais para ele próprio e seu parceiro de curtir a noite, descaracterizando assim a traição.” Esta trégua na rotina conjugal, que implica a suspensão temporária dos deveres de fidelidade, não passa de uma amostra grátis -como aqueles remédios de brinde dos médicos- perante o tamanho da farmácia que representa o Carnaval desde suas origens até hoje: um verdadeiro pharmakón [1] cultural.
Sua função de remédio ou veneno depende do seu uso; do tamanho da dose: em quantidade e frequência. Se os casados (conjugados) aproveitam este lapso para pular -a cerca e outras barreiras morais- fora do jugo de cada dia; os solteiros (celibatários) pulam o que? Seguindo com a metáfora carnavalesca poderíamos dizer que eles pulam a corda, feito pipocas. À falta de uma cerca que marque o limite e oriente o percurso, não faltam cordas para pular, se amarrar, quando não se enrolar também. Celibatário também é um nome que damos a um modo de satisfação que prescinde do parceiro sexual; então, se faz parceria com qualquer (outra) coisa: o álcool, uma droga, uma tela, e outros fetiches.
Aqueles personagens que aprendemos a chamar de “viciados”, “adictos”, dependentes químicos”, são indivíduos que, sob um modo celibatário -solteiro- de procurar satisfação, perderam “individualmente” a medida que o próprio carnaval encarna “socialmente” em sua função ritualizada de regulação dos prazeres. E, por consequência, todo ano é carnaval. Ou seja, não se sabe quando começa nem quando termina aquela “trégua” de cada um com seu próprio jugo (trabalho) de cada dia.
Do ponto de vista antropológico, o carnaval é um ritual de reversão, no qual os papéis sociais são invertidos e as normas de comportamento são suspensas. O Carnaval é uma festa popular tradicionalmente cristã, apesar de algumas de suas características remontarem a celebrações realizadas por diferentes povos pagãos na Antiguidade. A relação entre o Carnaval e o cristianismo está na proposta da Igreja de canalizar os “impulsos carnais” dos fiéis em uma data apenas, para, depois, impor-lhes um período de restrição e jejum.
O carnis levale surgiu como um período para as pessoas extravasarem seus desejos antes de iniciarem a Quaresma. A partir dessa expressão, que significa “retirar a carne”, pode-se entender o Carnaval exatamente como o momento de preparação para que os prazeres carnais fossem retirados. Desse modo, os fiéis tinham um momento para extravasar todos os seus impulsos antes de iniciarem sua restrição. A Igreja tentou impor regras a eles durante o Carnaval, mas fracassou nisso durante todo o medievo. A festa, portanto, seguiu sendo um momento de inversão da ordem e de satisfação dos impulsos carnais.
Retornando para nossa atualidade, naqueles casos em que a “cerca” que delimita os lados -um antes e um depois dela- não funciona de direito, a janela que se abre com o “grito de carnaval” e que, supostamente, deveria fechar-se com o início da “Quaresma” (quarenta dias de jejum, penitência, abstinência...); não tem hora certa para ser fechada. E, perante esta “falha aberta” na regulação da dose de prazer, nunca falta uma boa ressaca para sinalizar que, de fato, a festa acabou, nem que seja “só por hoje”; quer dizer, foi suspensa, pelo menos até a próxima... festa/dose.
Para concluir, a brincadeira carnavalesca de “esticar a corda” e inverter o jogo permitindo aos abstinentes realizar boa parte de suas vontades contidas tem uma função mais séria do que comumente pode se imaginar. Ela opera como um catalisador dos excessos que, de outro modo, seriam acumulados indefinidamente até serem, cada vez com maior frequência, reproduzidos aleatoriamente, sem tom nem som.
Então... Música, Maestro!
Bom Carnaval!!!
[1] Palavra da qual deriva o termo “farmácia” e todos os outros vocábulos afins. Como a doença seria um castigo divino contra o pecador, a cura era um ritual de purificação e transe durante o qual se atribuía um valor sobrenatural à droga. O phármakon, então, estava impregnado desse componente mágico e poderia a um só tempo designar “remédio” e “veneno”. Também poderia se referir a “purgante”, tanto em uma acepção figurada quanto literal. Com a filosofia grega, o termo foi perdendo seu sentido de sobrenatural.
*Pablo Sauce é psicólogo e coordenador do Núcleo de Compulsões da Holiste Psiquiatria
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