O insubordinado beijo da paz
Uma relíquia fotográfica de lábios travados na efervescente Times Square, coração de Nova Iorque, virou o epicentro de uma polêmica no Departamento dos Assuntos de Veteranos dos EUA, no mês passado. Proibiram a exibição do retrato pelos corredores sagrados dos prédios federais, alegando que o flagrante destoa dos "valores" da instituição.
Em memorando tão pomposo quanto um convite para a cerimônia do Oscar em Hollywood, foi anunciado: "Esta medida, senhoras e senhores, é impulsionada pela nobre causa de reconhecer que a fotografia retrata um ato não consensual, desalinhado com nossa política de tolerância zero a assédio e agressão sexual”.
A imagem icônica, de 14 de agosto de 1945, capta o momento em que a enfermeira Greta Zimmer é surpreendida com um beijo mais animado do marinheiro George Mendonsa, na euforia pela rendição japonesa que marcou o término oficial da Segunda Guerra.
Ele que, durante o beijo, correu sério risco de um joelhaço entre as pernas, curtia folga no dia em que foi eternizado anonimamente pela revista Life. Passou anos garantindo ser o cara da foto, algo só confirmado décadas depois com o uso da magia do reconhecimento facial. Ela, por sua vez, nunca protestou contra aquele flash e, mais tarde, até se tornaria amiga de Rita, esposa dele.
A controvérsia esquentou quando um tal de Denis McDonough, o chefão dos Assuntos dos Veteranos, buscou a arena midiática para esclarecer que a imagem não havia sido banida, mas sim temporariamente removida para avaliação. Segundo ele, a foto seria recolocada, sublinhando o respeito pela história, mesmo que seu conteúdo desperte debates modernos sobre consentimento.
Ao lembrar do arsenal de imagens de tantas guerras em que os EUA meteram os pés pelas mãos peludas, sobretudo com propósitos econômicos, soa hipócrita condenar a foto de um beijo – ainda que furtado – em vez de tantos outros atos bem mais condenáveis. Afinal, beijar é só um gesto sabiamente desenvolvido por algumas criaturas para estancar uma prosa quando as palavras (ou os gorjeios, miados, latidos, rugidos, uivos e afins) se tornam desnecessárias.
É essencial, portanto, distingui-lo da gravidade do assédio ou agressão sexual. No Brasil, o movimento “Não é não”, criado em 2017 por um grupo de cabeças iluminadas para dar um chega pra lá em qualquer mão boba nos blocos do Carnaval carioca – mais de 4.000 adesivos foram distribuídos entre as foliãs naquele ano – ganhou um reforço com a aprovação de uma lei que põe um freio no assédio em locais como bares, boates, restaurantes, shows e outros lugares fechados onde se vendem bebidas alcoólicas. Fico em dúvida sobre se em locais fechados que não vendam bebidas alcoólicas a prática será tolerada.
E se o objetivo é garantir que o público feminino não passe por qualquer constrangimento ou violência nesses ambientes, lamenta-se que nada se diga acerca de locais “abertos” onde se vende outros tipos de drogas psicotrópicas que atuam no sistema nervoso central, mudando o comportamento de quem consome.
A lei 14.786, ou a lei do “Não é não”, segue o exemplo da norma em vigor na cidade espanhola de Barcelona, aplicada ao caso envolvendo Daniel Alves, ex-jogador da seleção brasileira recém-condenado a 4 anos e meio de prisão por estupro numa boate.
Quanto ao protocolo que entrará em vigor no segundo semestre deste ano, os estabelecimentos deverão exibir, em local visível, como puxar o freio de emergência da lei, além de adotar mecanismos para afastar a vítima do agressor e colaborar para identificação de possíveis testemunhas, garantindo o acesso às imagens das câmeras de segurança pela polícia e pelos envolvidos nos incidentes.
Busca-se evitar dois tipos de agressão: o constrangimento, que abarca qualquer insistência, física ou verbal, sofrida por uma mulher depois de manifestada a sua discordância, e a violência propriamente dita, que tenha resultado em dano, lesão ou morte. Além das boates, bares e casas de shows, ambientes com competições esportivas também se enquadram na legislação. Só não vale para cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa (tenho ligeira desconfiança sobre o motivo!).
A nova medida complementa a lei 13.718, de 2018, que criminaliza a ação na ausência do “sim” consentido. No pacote estão atos de importunação sexual (definida legalmente como a prática de ato libidinoso contra alguém sem a sua anuência “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiros”) e a divulgação de cenas de estupro, nudez e sexo. Quem for pego com a boca na botija, vai encarar de um a cinco anos de xadrez.
Como não ficou claro se beijo furtado será visto como ato libidinoso, aqui vai minha provocação aos ilustres legisladores e juristas: se for para selar a paz e pôr fim a quaisquer guerras entre humanos, que se distribuam beijos a granel, independentemente de gênero, classe social, cor de pele ou religião. Chega de drones, mísseis ou, pior, alguns memorandos!
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