Ecos de uma paixão
Os primeiros sintomas apareceram nos campinhos empoeirados nos arredores de Patos, no Sertão paraibano, onde brinquei de jogar bola até os 10 anos de idade. Naquela cidade também ouvi pela primeira vez a narração de uma partida de futebol entre o Nacional (de Canário, Lulu e Perequeté) e o Esporte, pela Rádio Espinharas, cujo locutor morava na mesma rua que eu.
Quem viveu a experiência viu que futebol "assistido" e "irradiado" eram universos paralelos, habitados por emoções distintas. No rádio, os narradores faziam da partida um drama épico, mesmo quando, no campo, a bola circulava preguiçosa de um lado para o outro, sob um sol particular para cada um.
Pelas ondas sonoras, cada ataque era uma investida heróica, uma marcha contra trincheiras inimigas. E o gol não era apenas uma bola que atravessava a linha de fundo e adormecia nas redes. Era êxtase coletivo, um urro em coro – Gooool! O futebol ao vivo se sentia absurdamente diminuído, sem a grandiosidade que a voz do rádio lhe conferia.
O rádio era uma alquimia de vozes que criava paisagens invisíveis. Não era som sem imagem, era som inventando imagens, costurando realidades além das limitadas por olhares míopes. E isso não se restringia ao futebol. O noticiário carregava uma autoridade quase mítica, uma presença que a TV nunca alcançou – uma voz firme preenche o imaginário de forma mais profunda que qualquer imagem de um locutor maquiado e com todos os fios de cabelo no lugar.
Diferente de agora, nunca troquei o campo pelo sofá. Ir ao jogo era ritual, ainda que, na prática, o espetáculo nem sempre fosse o drama pulsante que o rádio sugeria. Mas o casamento entre esses dois universos só veio quando ganhei meu primeiro radinho de pilha. Ali, com os olhos no campo e os ouvidos na narração, o futebol se completava: eu tinha o jogo visto e o contado, duas faces da mesma paixão.
Era o tempo dos narradores que, sem a imagem para provar ou contestar, dramatizavam cada lance. As narrações, verdadeiras obras de ficção, eram projetadas do meio da torcida ou da beira do campo, sem o luxo das cabines fechadas.
Nos anos 1970, nas Alagoas de Arivaldo Maia, Édson Mauro, CSA e CRB, a TV enfim chegou lá em casa. As imagens passaram a dispensar certas palavras, e o "tira-teima", mais adiante, trouxe a precisão dos números, das distâncias – como se a emoção pudesse ser medida.
No rádio, o narrador precisava de uma assinatura própria, algo além de um bordão, uma marca poética que elevasse a grandiosidade do lance: um drible, um chute, um gol raro, decisivo. Isso acabaria migrando para a TV, além de, mais recentemente, para plataformas digitais como UOL Esportes, GloboEsporte.com e SportTV Play.
Quatro desses porta-vozes da emoção (alegria, medo, raiva, surpresa, tristeza e outras) foram marcantes na consolidação de minha paixão pelo futebol.
Geraldo José de Almeida, a voz do tricampeonato mundial na Copa do México, em 1970, eternizou frases como "Que é que é isso, minha gente!", "Olha lá, olha lá...", “Por pouco, muito pouco mesmo”, e criou apelidos inesquecíveis como "Craque café" (Pelé), “Mineirinho de ouro” (Tostão) e "Garoto do Parque" (Rivellino).
Os bordões de Waldir Amaral até hoje ecoam em meus ouvidos: "Estão desfraldadas as bandeiras do... Um tirambaço sensacional, fuzilou...!”. “Dez, é a camisa dele... Indivíduo competente...". “Tem peixe na rede do...” e "O relógio marca...". Foi ele quem apelidou Garrincha de “Demônio de pernas tortas”, Denilson de "Cacique de Ramos" e Zico de “Galinho de Quintino”.
Lembro ainda de Januário de Oliveira, mestre em apelidos. Chamava Ézio de "Super-Ézio", Valdir Bigode de “O matador de São Januário” e Sávio de "Anjo Loiro da Gávea". E gritava: "Taí o que você queria, bola rolando…", "Tá lá um corpo estendido no chão", “Tá na área, é agora, bateu...”, “É disso, é disso que o povo gosta!”, “Cruel, muito cruel...”
E o irreverente Silvio Luiz, autor de expressões impagáveis como "Olho no lance!", "Pelo amor dos meus filhinhos", “Pelas barbas do profeta”, “Foi, foi, foi ele, o craque da camisa...”, “É mais um gol brasileiro, meu povo, encha o peito, solta o grito da garganta e confira comigo no replay”, além de “Entortou a bigorna”, “Desandou a maionese” e “No pau!” – quando a bola acertava as traves, bem entendido.
Ando, reconheço, com certa má-vontade em descobrir novos porta-vozes. Não vejo mais ninguém feito Waldir Amaral, quase sete da noite de um domingo qualquer, há meio século, contar como viu o gol mais bonito da história do Maracanã: Vasco e Botafogo empatavam quando, no último minuto, Roberto Dinamite, um semideus da bola, atingiu a perfeição (ouça aqui). Meus olhos chuviscaram.
Desde os campinhos empoeirados no Sertão paraibano, o futebol para mim nunca foi só brincar de jogar bola. Tinha cheiro e gosto de paixão e poesia no ar.
(*) - A imagem que ilustra este texto, do amigo fotógrafo Edson Carvalho, foi a 1ª colocada do Concurso de Fotografia do Museu do Futebol 2024, São Paulo (www.museudofutebol.org.br).
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