Crônicas

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Tá pensando o quê?

Por Blog do Hayton 15/03/2023 14h02
Tá pensando o quê?
Foto: Hayton

É, meu amigo “Charlie” – assim você era chamado, numa referência boba àquela velha canção popular, lembra? –, lá se foram três anos que suas cinzas foram lançadas sobre as águas de um braço da lagoa de Pituaçu, próximo ao condomínio onde você morava, na Bahia.

A morte em si não melhora (nem piora) ninguém. Você, meu amigo, continua sendo uma das maiores reservas de caráter que conheci.

Apesar da dúvida quanto à existência de Deus. Afinal, você nunca engoliu essa história de “poucos com tanto e tantos com tão pouco” como desígnios divinos. Ou de suas esquisitices terrenas, algumas inexplicáveis. Por exemplo, detestava “barbudinhos vermelhinhos”, como você dizia.

Talvez resquício da primeira metade dos anos 1960, quando, vindo do interior paulista, você servia à Polícia do Exército no Rio de Janeiro. Ou porque, diferentemente de outras pessoas, você não tinha motivos para idolatrar Marx, Fidel, Guevara e outras barbas icônicas.

Um dia, você virou bancário. Doeu, mas teve que renunciar ao cargo de professor universitário de educação física. Mais tarde, tornou-se um dos melhores analistas de projetos da empresa.

E justamente nos anos 1970/80, quando o Brasil apostou alto na sobrevida do planeta Terra, criando o Proálcool, o mais bem-sucedido programa de substituição em larga escala dos derivados de petróleo. O álcool de cana, frente à gasolina, reduziria em 90% a emissão de gases do efeito estufa.

Lembra daquele usineiro que, quando soube da aprovação do projeto de financiamento para implantar uma destilaria, quis agradecer pela velocidade do desfecho do estudo? Aquele mesmo que mandou alguém até a sua casa, levando, de presente, uma TV “do tamanho de uma parede”!

Puto nas calças, você subia pelos muros, cuspindo abelhas, pois nada fizera além do seu trabalho limpo, de rotina. E saiu aquele esbregue antológico no coitado do portador, antes de atirar a caixa de papelão no olho da rua, debaixo de chuva. “Tá pensando o quê, cambada de…”.

É, meu amigo, você era raro, singular. Pena que nosso convívio deu-se apenas entre 1983 e 1993, em Alagoas e na Bahia. Pouco? O bastante, agora percebo.

Depois que se aposentou, você mantinha contato apenas com meia dúzia de amigos (e me escalou no time!), a quem brindava com múltiplos saberes sobre cinema, economia, esportes, literatura, música, política etc.

Com os rancores e as dores do decorrer do tempo, mais adiante você passou a evitar polêmicas, sobretudo envolvendo política partidária, embora nunca tenha perdido a capacidade de se indignar.

Desiludido e pessimista com os rumos tomados pelo governo, você deixou claro aquilo que sentia: “esses barbudinhos vermelhinhos traíram miseravelmente as suas origens”.

Não sei quem você apoiou nas eleições presidenciais de 2018, pouco antes de sua partida, mas dá pra imaginar. Pena que já não havia entre nós a mesma proximidade de antes, com o desvelo esperado no caso de antigos parceiros de copo, de crenças e de cruz.

Se existe outra dimensão onde o seu espírito esteja assistindo à novela que hoje se desenrola por aqui, dou por visto o tamanho de seu desencanto, vendo irmãos discutindo obviedades do tipo: será que existe mimo desinteressado, sem intenções ocultas, desde uma flor sem cheiro até uma gargantilha de brilhantes que se dê de presente a alguém?

Ou discutindo os porquês de um certo reino árabe oferecer, de mãos beijadas (no plural mesmo!), “bijuterias” no valor de R$ 16,5 milhões a uma rainha consorte, além de doar ao rei um estojo com caneta, relógio, abotoaduras, valendo cerca de R$ 400 mil.

Ou o fato de a alfândega confiscar apenas o pacote mais robusto, em que pese o esforço do rei apaixonado, prestes a desocupar o trono, querendo liberar o presente oferecido à rainha consorte.

Há quem diga que o amor, algumas vezes, não só é míope, como é mouco, mudo e estúpido.

Discute-se inclusive os porquês de milhares de súditos fanáticos tomarem chuva e sol, por mais de dois meses, em acampamentos nas portas de quartéis, a pedirem a Deus por um golpe militar em favor da família real.

Onde você estiver, meu amigo “Charlie”, imagino que já não veja tanta diferença assim entre os “barbudinhos vermelhinhos” e aqueles que se barbeiam todo dia, na maior cara dura (e lisa!).

"Tá pensando o quê, cambada de..." – diria você, puto nas calças com o escândalo que temos pro jantar.