Crônicas

* Este texto não reflete necessariamente a opinião do Em Tempo Notícias

Pelé não sabia de nada

Texto publicado originalmente em 2019

Por Hayton Rocha 29/12/2022 19h07
Pelé não sabia de nada

A última explosão genuína de felicidade de meu pai aconteceu na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió(AL), quando juntos vimos Pelé, aos 29 anos, no auge da maturidade esportiva, receber o passe de Rivellino sobre a grande área, saltar mais alto que o zagueiro Burgnich e cabecear no canto esquerdo do goleiro Albertosi, marcando o primeiro gol da goleada de 4x1 do Brasil sobre a Itália que garantiu a conquista da Copa do Mundo 1970, no México. Era o tricampeonato mundial e a primeira copa transmitida pela TV, ao vivo, para todo o Brasil.

Vários torcedores alagoanos comemoravam a conquista na Praça dos Martírios em junho de 1970, em frente ao Palácio do Governo, quando o governador Lamenha Filho, entusiasmado com a vitória e com o “carnaval” fora de época, abriu mão da homenagem que iria receber — daria nome ao estádio em reta final de construção no Trapiche da Barra — e decidiu ali mesmo batizar a obra reverenciando o melhor jogador do mundo: estádio Rei Pelé.

Meu pai e eu, aos 12 anos, pretendíamos assistir ao jogo de abertura do novo estádio "ao vivo e a cores, sem direito a replay", como se dizia naquela época. Contávamos os dias que faltavam para ver de perto o rei do futebol, mas isso acabou não acontecendo. O dinheiro que seria gasto com as entradas foi utilizado no sustento da família — pai, mãe e nove filhos.

Pelé, claro, não sabia de nada.

Quatro meses depois, em outubro de 1970, diante de quase 46 mil torcedores, o Santos FC inaugurava o Estádio Rei Pelé goleando por 5x0 a Seleção Alagoana, com gols de Douglas (2), Pelé (2) e Nenê.

Além dele, perdemos a oportunidade única de ver em ação craques como Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Cejas, Djalma Dias, Joel Camargo, Ramos Delgado e Rildo, todos com passagem pelas seleções de Argentina ou Brasil.

Em menos de dois anos (maio de 1972), meu pai partiu sem nunca ter visto de perto Pelé. E eu só fui conhecê-lo em junho de 2013, na área nobre multiuso do Estádio do Morumbi, em São Paulo, quando do lançamento do projeto Brasil... um país, um mundo, exposição itinerante de acervo de peças históricas, como camisas usadas em jogos oficiais, troféus, medalhas e chuteiras, que passaria pelas 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014.

Pelé, mesmo sem coroa, naquele dia entrou no salão de forma soberana, atraindo para si todas as atenções. Havia certo alvoroço, barulho surdo e confuso, onde várias pessoas falavam ao mesmo tempo, mas em voz baixa, com todo o respeito. Ali estava um herói na acepção da palavra, alguém que mudou o rumo da história de sua nação e será sempre lembrado por seus feitos.

Tanto pelo Santos FC, onde conquistou todos os títulos possíveis — estaduais, nacionais, sul-americanos, mundiais —, como pela Seleção Brasileira, pela qual é até hoje o único atleta três vezes campeão do mundo, em 1958, 1962 e 1970. De quebra, ninguém conseguiu marcar quase 1300 gols em pouco mais de 1300 partidas, números que traduzem quem foi o Atleta do Século 20 de todos os esportes, segundo o jornal francês L'Equipe.

Até nos Estados Unidos, em seu último contrato profissional com o New York Cosmos, entre 1975 e 1977, ele atraía todas as atenções. A ponto de um certo senhor grisalho, ao recebê-lo na Casa Branca, ter a humildade de reconhecer: “Muito prazer, eu sou Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos. Você não precisa se apresentar. Pelé todo o mundo conhece.”

Nem tanto, Mr. Carter! Eu era parte de “todo o mundo” e, como muita gente, nem sequer havia chegado perto dele. Por isso, aproveitei alguns minutos de sua atenção naquela manhã de terça-feira no Morumbi para, numa rápida conversa ao pé do ouvido, contar o que acontecera comigo e meu pai em 1970, quando não pudemos vê-lo atuar em Maceió com a camisa branca mais famosa do planeta.

Pelé, óbvio, nunca soube de nada.

Reencontramo-nos no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, no final de 2013, na abertura oficial da exposição Brasil... um país, um mundo, em Brasília.

Pelé já sabia de tudo. Como se fosse um velho amigo, o rei me trouxe uma versão nova, autografada, do manto sagrado com que encantou plateias pelo mundo afora, que guardo comigo para o resto da vida. Afinal, como dizia o falecido craque húngaro Ferenc Puskas, “o melhor jogador de todos os tempos foi Di Stefano; Pelé não era deste mundo”.

Noutro plano qualquer do universo, meu pai certamente ficou feliz, como se estivesse na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió, há quase meio século. "O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente", diria o poeta Mario Quintana.

Eu bem queria tê-lo a meu lado quando estive com Pelé! Teria sido perfeito. Mas a vida, que sempre faz da gente o que bem quer, quis de outro jeito.