Crônicas

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A caipirinha derramada

Por Blog do Hayton 16/11/2022 09h09
A caipirinha derramada

Você já parou pra pensar como seria uma Disneyworld por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.

Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ...

Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens principais. Pateta, tampouco, eis que não se distinguiria da multidão. As estrelas seriam Chicó e João Grilo, extraídas dos folhetos de cordel para as proezas da obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, a figura mais ligada à nordestinidade que já existiu (“eu não troco meu oxente pelo 'ok' de ninguém!”).

Chegando lá, você não veria o castelo de Cinderela no centro do Magic Kingdom, mas sim uma escultura do tamanho do Cristo Redentor, reproduzindo a tela “Retirantes”, de Portinari, obra inspirada no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, sobre uma família de sertanejos tangida pela estiagem.




“Retirantes” - Cândido Portinari
E um chato que me escuta, da mesa ao lado no boteco, pondera que ficaria melhor se a escultura espelhasse o “Patriota do Caminhão” (ou o “Viking do Capitólio verde-amarelo”), o manifestante de Caruaru inconformado com o desfecho das últimas eleições presidenciais que foi visto sobre o para-choque, agarrado ao para-brisa de um veículo, cantando, quem sabe, “eeeu/ sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amooor...” A ciência nos deve uma boa explicação acerca do cérebro desse rapaz.

Não esculhambemos a ideia no nascedouro, por favor! "Quem é você para derramar meu mungunzá?!" De novo, se o delírio etílico é meu, prefiro a homenagem ao velho Graça e a Portinari.

Pois bem. Afora os brinquedos clássicos – carrossel, montanha-russa, roda gigante –, a “Mandacarulândia” permitiria a você, no mínimo, quatro experiências memoráveis:

Quilombo dos Palmares – Um simulador replicaria o que aconteceu na Serra da Barriga, na Mata alagoana. Você lidaria com muita água, sol, ventos e cheiros, fugindo com escravos das fazendas de cana-de-açúcar. Pelo caminho, enfrentaria capitães-do-mato e feitores ávidos por devolvê-los ao pelourinho. Cada obstáculo superado seria premiado com guloseimas à base de banana, batata-doce, feijão de corda, milho e tapioca, além de pescados e carnes de galinha de capoeira e bacorinho. No final, faria uma selfie ao lado da escultura em tamanho natural de Zumbi, à beira do chamado abismo civilizatório que nos distingue das principais nações do mundo.

Senzala & Casa-Grande – Num trem-fantasma, você colocaria óculos 3D e mergulharia na obra clássica de Gilberto Freyre. Veria que, diferentemente daquilo que foi escrito no início do século passado, a elite branca nunca enxergou como um valor cultural brasileiro a miscigenação com negros e índios, embora a Igreja, diante da escassez de brancas-de-neve, tenha incentivado o casamento de portugueses com indígenas (jamais com negras). Veria também a origem de nossa sem-vergonhice – o famoso jeitinho, que não mais engana ninguém – e do exagero atribuído à sexualidade de indígenas e escravos. E as raízes da opressão contra a mulher, onde machões cultivavam o sentimento de posse, ora refletido no fato de sermos o 5º país com maior taxa de feminicídios.

Cabocla e os 70 anões – Em ligeira alusão à origem da legítima Disneyworld, outro simulador exploraria imagens do Cânion do Xingó num jogo onde uma rainha malvada, com ciúmes da beleza de Maria Bonita no esplendor de seus 45 anos, manda decapitá-la. Mas descobre que ela não morreu: estaria amasiada numa grota com Lampião e mais 70 anões do orçamento secreto do Reino de Mandacarulândia.

Ondas Eternas – Numa tenda acústica, você, após duas gotinhas de um colírio alucinógeno, enxergaria cada movimento do grande Zé Ramalho, só de chapéu de couro e alpercatas, surfando ondas que viriam como gotas em silêncio, derrubando homens entre outros animais, devastando a sede dos matagais, devorando árvores, pensamentos, palavras...

Daí se mete novamente o chato do boteco, agora entornando o meu copo sobre a mesa. E sugere outra atração, inspirada em “Marimbondos de Fogo”, obra que levou à ABL o poeta Zé Sarney – engraçado, grandes nomes como Drummond, Graciliano e Verissimo, nunca concorreram à Academia. Deve haver alguma lógica nisso! Sobre o livro do maranhense, aliás, referiu-se Millôr Fernandes como “aquele que quando você larga não quer mais pegar”.

Melhor ir pra casa que a ressaca será cruel. Não vale a pena chorar sobre a caipirinha derramada. Não ia dar certo mesmo. Mas seria interessante!